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Pessoas com deficiência: Será o Porto uma cidade acessível para todos?

Atualizado: 19 de jan.

Combater a exclusão social de pessoas com deficiência ou incapacidade exige políticas abrangentes e integradas, que incluam a eliminação de barreiras físicas, o fomento da acessibilidade, a promoção de oportunidades iguais no mercado de trabalho, o acesso a educação inclusiva e a luta contra o estigma e a discriminação.

Neste aspeto, os responsáveis pela cidade têm um papel fundamental no que diz respeito a diminuir os constrangimentos para as pessoas com deficiência. A cidade do Porto foi, em 2022, considerada uma das cidades mais acessíveis da Europa. A cidade foi uma das pré-selecionadas para o prémio Access City 2022, que reconhece os esforços de uma localidade para se tornar mais acessível às pessoas com deficiência. A Comissão Europeia atribuiu-lhe uma menção especial pelo aperfeiçoamento das suas estações ferroviárias, já que o Porto fez melhorias no sistema ferroviário e no sistema de metropolitano, para que as pessoas com deficiência os possam utilizar. No entanto, à parte das menções especiais, a realidade de quem precisa destas condições é muito diferente. António Almeida, de 65 anos; Beatriz Baptista, de 20 anos; Aureliano Moreira, de 85 anos; Armando Baltazar, de 73 anos e Catarina Oliveira, de 35 anos. O Essencial recolheu o testemunho destas 5 pessoas que, ao viverem na cidade do Porto, se confrontam com uma “inclusão que exclui”.

Em contraponto, o vereador do Pelouro da Educação e Pelouro da Coesão Social, Fernando Paulo, falou a’O Essencial sobre as medidas adotadas pela Câmara para construírem uma cidade acessível a todos.

Falta de acessibilidade para pessoas com mobilidade condicionada

António Almeida, de 65 anos, é funcionário da delegação distrital do Porto da Associação Portuguesa de Deficientes (APD). A APD, inaugurada em 1972, é uma organização de pessoas com deficiência e igualmente dirigida e constituída por algumas pessoas com deficiência. António destaca que “a APD está a lutar pela inclusão total”, de forma a diminuir as diferenças.


António Almeida. Imagem: Bruna Pinheiro/O Essencial

Nascido e residente no Porto, António viveu a sua vida toda acompanhado de uma deficiência. Aos 8 meses teve poliomielite, um tipo de paralisia infantil que desde sempre se mostrou uma condicionante “Acontece que, desde muito cedo, comecei a lidar com a exclusão”. Começando pela dificuldade em encontrar uma escola que o aceitasse, passando pela exclusão por parte dos colegas e pela dificuldade que era em ter alguém que ajudasse a fazer algo tão básico como urinar. “Cheguei a fazer nas calças porque a vontade foi imensa e não consegui aguentar. E tudo porque eu tinha pedido à professora no fim da aula e ela disse que ia pedir à servente e a servente não apareceu”, contou.

Também Catarina Oliveira, uma jovem de 35 anos, viu a sua vida mudar quando, aos 27 anos, ficou paraplégica. As razões que levaram a que a nutricionista acabasse numa cadeira de rodas são desconhecidas até hoje. Catarina explica que, numa viagem que fez até ao Brasil, sentiu fortes dores na coluna, mas achou que estavam relacionadas com a prática do desporto que fazia na altura, o voleibol. Só mais tarde é que, depois de ter sido internada, se descobriu que se tratava de “uma mielite transversa, uma inflamação na medula”.

Tal como António Moreira, Catarina afirma que “os maiores entraves, enquanto pessoa com deficiência motora, são, sem dúvida, as barreiras físicas, todas as barreiras arquitetónicas, a falta de acessibilidade no geral”. Admite muitas vezes evitar ir a alguns sítios sozinha por saber que não são adaptados a pessoas portadoras de deficiência. Este problema reflete-se, sobretudo nos transportes públicos, que apesar de já terem melhorado bastante, continuam a ser uma dor de cabeça. “Nós não podemos continuar a criar focos nas cidades que são acessíveis, se depois eu não consigo circular na cidade acessivelmente. Ou porque faltam rampas ou porque não há passeios ou porque há obstáculos no meio do passeio ou porque não há transportes públicos acessíveis, onde eu consiga circular de forma autónoma, por exemplo. Nós temos, obviamente, o metro, que acaba por ser o transporte mais acessível. Os autocarros, um quarto, já têm rampas manuais, mas depois existem inúmeros constrangimentos.”

Na vertente da empregabilidade, os registos do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) mostram um aumento de 4,6% no número de pessoas com deficiência à procura de emprego, entre 2015 e 2022. António foi uma das pessoas com deficiência que sofreu preconceito, na tentativa de encontrar um emprego no Porto. “Fiz seis formações profissionais completas. Uma pessoa com deficiência, não lhe basta tirar uma coisinha como outro jovem. Ou tira muito mais para ter uma panóplia de situações que possa recorrer.” Mesmo assim, relembra-se de “um dia, ter concorrido a um lugar para desenhador e, quando fui ao local, o senhor disse-me: «Eu estava a contar com um jovem» e eu respondi «Eu tenho 22 anos», ao que ele me disse «Sim, sim, mas, percebe... Vamos fazer assim, você vai embora e, se eu estiver interessado, eu volto a ligar»”.

"Eu estou a ser prejudicado, mas isso não é permitido por lei."

– António Almeida, sócio e funcionário da APD


Catarina Oliveira. Imagem fornecida pela própria

Do mesmo modo, a nutricionista explica que a acessibilidade não deve ser apenas vista como uma necessidade física. Deve envolver outros campos, tais como o dos comportamentos, da comunicação, da organização dos sistemas e frisa que a solução está em incentivar ao diálogo e à cooperação entre pessoas com e sem deficiência. Segundo Catarina, só assim é que as pessoas podem realmente entender quais as necessidades de alguém com uma cadeira de rodas, por exemplo. “Uma pessoa cega não vê as coisas da mesma forma que nós. Uma pessoa surda não entende o mundo da mesma forma que nós. Uma pessoa que não anda não pode aceder da mesma forma que uma pessoa que anda, aos mesmos sítios. Portanto nós temos que dar equidade e acessibilidade e equidade”, garante.

“O Porto, geograficamente, é terrível para andar”

A exclusão sofrida por pessoas com dificuldades motoras é ainda maior quando, em grande parte dos edifícios da cidade, os acessos são limitados a longas escadas.

Sobre a cidade do Porto ter ou não as condições necessárias para que as pessoas com deficiência consigam viver, António confessa que, “infelizmente”, ainda se depara “com grandes problemas nas barreiras arquitetónicas.” Recentemente, na Praça D. João I, um grupo de pessoas com deficiência realizou uma manifestação para reivindicarem os seus “direitos sem barreiras”. A maioria deles, de cadeira de rodas, seguravam cartazes com mensagens “Acessibilidade não é caridade” e “Vida independente = Cidadania”.

António recorda situações do seu quotidiano que revelam a ineficiência de condições adaptadas a estas pessoas. “Por exemplo, eu vou ter de fazer um exame na quinta-feira, na Lapa, e eu tenho de levar a minha filha comigo. Onde eu tenho de colocar o carro, não tenho acesso ao local onde tenho de fazer o exame. É aqui [que está] o verdadeiro problema”. “Uma das coisas que, para mim, é prioritária são os acessos. Porque, às vezes, eu não vou porque não tenho acessos”, explica.

Segundo Catarina, há estabelecimentos na cidade Invicta que, de facto, até estão adaptados, no entanto, havendo degraus à entrada, a ida a estes locais é imediatamente posta em causa. Para além disso, as idas à casa de banho são também algo a ser referido pela jovem. “Dou sempre o exemplo ali da zona do Aduela, do Pipa Velha, na Baixa do Porto. É uma zona que foi recentemente remodelada e eu consigo até circular muito bem sozinha ou até em Cedofeita que não está remodelada, mas eu consigo andar sozinha. Só que depois não consigo entrar em lado nenhum. Quase todas as lojas de Cedofeita não são acessíveis. Quase todas as lojas de Santa Catarina não são acessíveis. Quero ir do Aduela para o Túnel de Ceuta, vou ali pelo antigo Armazém de Chá e não tenho rampa para passar na passadeira”.

Beatriz Baptista é aluna do curso de Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). A jovem revelou a'O Essencial que nasceu com paralisia cerebral, “uma espécie de AVC”, causada pela falta de oxigénio em algumas células.


Beatriz Baptista. Imagem fornecida pela mesma

Também ela salienta a problemática das infraestruturas pouco acessíveis. Beatriz revelou que já lhe foram garantidas condições que, na realidade, não existiam - “uma vez, na Rua de Santa Catarina, a pessoa disse que [um local] era acessível e, quando chegámos lá, tinha um degrau enorme na entrada e nem sequer havia casas de banho adaptadas”. Na Cordoaria, aponta que “não há um único bar que seja acessível para eu entrar”, devido aos degraus “enormes” que existem à entrada. “É muito triste e revoltante querer ir consumir uma bebida a um bar, não poder entrar e ter de ser um amigo a ir buscar por ti”, confessa.

Estas circunstâncias impossibilitam que pessoas com mobilidade condicionada se desloquem na cidade com a mesma segurança que todas as outras. Beatriz afirma que apenas se desloca na cidadese já conhecer o caminho e as acessibilidades que os espaços que têm porque já não tenho medo de ir sozinha durante o dia”. No caso de não conhecer os locais onde pretende ir, sente a necessidade de ir acompanhada. Reforça que “há coisas, no teu dia a dia, que as outras pessoas fazem sozinhas, e eu, apesar de o poder fazer, dificulta três vezes mais a tarefa”.

Sobre as “barreiras arquitetónicas” que existem na cidade, diz que “o mais revoltante é ir a um edifício novo e ver que têm os mesmos erros dos outros edifícios construídos há 50 anos. Eu questiono-me: Será que os engenheiros e os arquitetos estão a ser devidamente informados sobre estas leis? Será que sabem?”

"Ainda há muita coisa que está mal, que ainda não foi pensada e que já deveria ter sido há muito tempo."

– Beatriz Baptista, aluna da FLUP

Inclusão que exclui

Segundo o decreto de lei n.º163, é da responsabilidade do Estado garantir os direitos de pessoas com necessidades especiais e quebrar as barreiras físicas que impedem a sua integração na sociedade. No entanto, para António, é aqui que reside o maior problema: “O problema é que quem faz as leis é o Estado, quem comete as imprudências é o Estado e a entidade reguladora é o Estado”.

"Temos que mexer com isso. E como é que se mexe com isso? São as organizações não governamentais, onde a APD está incluída. São este tipo de pessoas que têm de desenvolver uma atividade no sentido de tentar que isto mude".

– António Almeida, sócio e funcionário da APD

A Prestação Social para a Inclusão (PSI), criada pelo ministério da atual ministra da Inclusão, Ana Sofia Antunes, destina-se a cidadãos nacionais e estrangeiros, refugiados e apátridas que tenham uma deficiência da qual resulte um grau de incapacidade igual ou superior a 60%. Apesar desta ser a teoria, só a partir dos 80% de incapacidade se garante a total prestação. Todos os casos inferiores a isso são sujeitos a averiguação. Para António, que se desloca de cadeira de rodas, este cenário é, muitas vezes, desadequado: “Eu tenho 70% [de incapacidade] e, como trabalho e sou chefe de serviço aqui na associação, ganho um bocadinho mais que o salário mínimo nacional. Portanto, não estou incluído. Os cegos são todos incluídos porque têm um ar de incapacidade muito alto”.

Para António Almeida, a Ministra da Inclusão “tratou da vida de quem ela achou que devia tratar” e “criou uma injustiça muito grande”.

O estudo "Pessoas com Deficiência em Portugal – Indicadores de Direitos Humanos 2023", realizado pelo Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH/ISCSP-ULisboa), demonstra que 62,3% dos indivíduos com deficiência poderiam enfrentar risco de pobreza no ano de 2022 se não fosse pelo auxílio de prestações sociais. Contudo, o relatório revela ainda a dificuldade em diminuir essas diferenças socioeconómicas. António salienta que há barreiras sociais que “por vezes, são criadas por incompetência e por inoperância da fiscalização como, por exemplo, a quota de emprego. A quota de emprego significa que se uma entidade está a criar dez postos de trabalho, é obrigatório, nesses dez, uma quota de 5% direcionada a pessoas com deficiência. E isso, às vezes, não é tido em conta”.

A Lei das Cotas estabelece alguns requisitos para as pessoas com deficiência. Beatriz explica que “as empresas são obrigadas a preencher um determinado número de vagas para as pessoas com aquelas condições”, mas “na prática, muitas vezes não é implementada porque não há fiscalização das empresas. Ou seja, não se sabe se, efetivamente, aquela empresa cumpre com as leis de acessibilidade”. Afirma ainda que “não vale a pena uma empresa dizer que quer trabalhadores com deficiência no seu corpo docente, se depois chegas lá e não consegues entrar, circular e queres ir à casa de banho e nem tens uma casa de banho adaptada”.

A falta de fiscalização e a extinção do posto do provedor do cidadão com deficiência na Câmara do Porto são duas das coisas que também preocupam Catarina. Com um provedor, como o da Câmara de Matosinhos, as queixas, sugestões e injustiças seriam mais rapidamente resolvidas, uma vez que este tipo de burocracias tem uma resolução muito morosa, afirma. A jovem sugere também que se apliquem coimas para aqueles que desrespeitarem as leis, que “existem e muitas vezes são negligenciadas”. Além disso, considera que esse dinheiro deveria reverter a favor da construção de uma cidade mais acessível. “A fiscalização, a sensibilização e a figura do provedor deveriam ser atitudes tomadas urgentemente”.

Outra problemática passa pela maneira como a sociedade vê e trata a pessoa com deficiência. Este comportamento intitula-se de capacitismo e está associado à infantilização. Neste sentido, pelas experiencias da entrevistada, estes podem ser definidos como “um sistema de opressão e discriminação das pessoas com deficiência. É um preconceito que se configura sobretudo em barreiras atitudinais de interação, porque a pessoa com deficiência é vista como alguém inferior e fomos nós, seres humanos, ao longo da história, e a história, em si, que fez com que o capacitismo crescesse e nascesse".

"Empatia é nós entendermos que o outro tem uma realidade diferente da nossa que nós nunca vamos entender e que nós só podemos tentar compreender ouvindo e garantindo que asseguramos as necessidades específicas dos outros."

– Catarina Oliveira


Apesar das dificuldades que muitas vezes enfrenta, o sócio da APD esclarece que não quer ser beneficiado pela deficiência que tem. “Eu sou contra a exclusão pejorativa e contra a exclusão benéfica. Eu não aceito que nos deem prioridade nas filas. E, às vezes, sou obrigado porque sou quase empurrado por quem está atrás. «O senhor tem direito», «Mas eu abdico desse direito porque, à minha frente, está uma senhora cansada e eu até sou o que pode estar à espera porque estou sentado». Isto é complexo porque a maior parte das pessoas com deficiência não gosta que eu diga isto, mas eu não sou a favor. Isto também é exclusão.”, conta António.

Catarina partilha da mesma opinião e garante que o ativismo não se resume a manifestações. “Apercebo-me que nós falamos muito do ativismo e as pessoas pensam muito no ativismo como as pessoas que fazem manifestações nas ruas, que são super importantes, ou que estão ligadas a alguma associação”, confessa.

É neste sentido que Catarina tem trabalhado. O seu objetivo é, através das redes sociais, onde vê a sua comunidade crescer, partilhar as dificuldades, curiosidades e os episódios da vida de uma “espécie rara sobre rodas”, o nome que adotou na rede social. Aproveitou, então, esta oportunidade, que vê como uma forma de ativismo, para desmistificar a deficiência e levar à alteração de comportamentos: “Uma pessoa que viu um vídeo meu e que mudou a casa de banho do seu estabelecimento ou que constrói um turismo acessível e que de outra forma não o faria”.

Falta de acessibilidade no ensino

A falta de acessibilidade afeta todas as gerações. Assim como António e Catarina, também Beatriz Baptista, uma jovem de 20 anos, vê a sua vida condicionada por este fator.

A exclusão social a que estas pessoas são submetidas comprometem a sua saúde mental, já que criam receios sobre um sofrimento futuro que possa surgir. Beatriz recordou que, tal como António, durante a infância, “tinha sempre de ir à casa de banho com funcionárias”, já que “a casa de banho adaptada nunca estava aberta e eu tinha de, às vezes, andar de corredor em corredor à procura de uma funcionária que a abrisse”. Isto complicava a sua pontualidade nas aulas, visto que “ficava aflita, o intervalo passava e eu chegava atrasada por causa disso”. Exemplificou ainda que o acesso às salas de aula era dificultado. “As nossas salas de ciências, físico química e música eram no piso de cima e não havia elevador. A única forma de subir era pelas plataformas que se incorporam nas próprias escadas”, explicou. Contudo, a plataforma “estava sempre a avariar. Muitas vezes, eu estava na plataforma, já a meio do caminho, e aquilo parava comigo lá em cima”.

"Há muitas situações, ao longo do meu percurso escolar, que escusava de ter passado, se as coisas estivessem mais adaptadas e as pessoas tivessem mais vontade de arranjar soluções."

– Beatriz Baptista, aluna da FLUP


Na hora de acesso ao ensino superior, os estudantes com deficiência veem as suas opções reduzidas. Na Universidade do Porto, os alunos contam com o apoio do NAI.UP, o Núcleo de Apoio à Inclusão. A Universidade do Porto tem, ainda, medidas de apoio à inclusão, que se traduzem no Estatuto do Estudante com Necessidades Educativas Especiais (ENEE). Segundo este estatuto, é dever dos serviços da faculdade, definir “os apoios especializados de que o estudante poderá necessitar, nomeadamente as adequações do processo de ensino/aprendizagem (incluindo a avaliação) de que o estudante deva beneficiar e as ajudas tecnológicas necessárias”.

Além disso, de acordo com o artigo n.º 4, “as unidades orgânicas deverão assegurar atendimento prioritário e a acessibilidade nas suas instalações”. Ademais, “no caso de existirem problemas de acessibilidades físicas de difícil resolução imediata, deverão ser asseguradas, ainda que temporariamente, adequadas alternativas, sem prejuízo da definição simultânea de um plano de eliminação de barreiras arquitectónicas” e “a escolha das salas de aula e a organização de horários devem assegurar a melhor acessibilidade possível aos estudantes com NEE.”

Na teoria, a acessibilidade é garantida, mas a realidade não vai de encontro a esse cenário.

Existem aspetos positivos a apontar, como a existência de uma rampa na entrada da esplanada da FLUP, o que, para Beatriz, “é uma coisa pequena, mas já não me impede de ir lá para fora e usufruir da esplanada como todas as outras pessoas”, ou o grande apoio por parte do Núcleo de Apoio à Inclusão, como, por exemplo, “a nível de exames, tenho mais tempo para os fazer. Uma das coisas em que fiquei afetada foi na minha escrita, escrevo mais devagar”. No acesso às residências da faculdade, “acabou por correr bem e tive prioridade na escolha do quarto”.

No entanto, ainda que existam algumas medidas de inclusão, são vários os entraves que não estão em concordância com o EENNE. Elevadores que “estão quase sempre avariados”, o facto de, em três pisos, existir apenas uma casa de banho “onde a minha cadeira elétrica entre” e ainda as condições de algumas salas de aula: “No caso dos anfiteatros, para mim, é impossível estar nas aulas naquelas mesas minúsculas, e eu tenho imensas aulas lá”. Mesmo tendo conseguido uma mesa adaptada, nota que “foi um processo demorado, não vou dizer que tive logo a mesa. Penso que demorou entre um e dois meses”.

"Pequenos degraus podem fazer toda a diferença entre eu conseguir entrar ou não sozinha em algum lugar."

– Beatriz Baptista, aluna da FLUP

Transportes públicos inacessíveis

A realidade das deslocações para uma pessoa com mobilidade condicionada é dura. “Uma pessoa que vai trabalhar para o seu escritório que até seja acessível, mas que dependa de um transporte público, muitas vezes não consegue ir no primeiro, porque vai cheio e não tem lugar para ela. Não consegue ir no segundo, porque não há rampa naquele autocarro. Não consegue ir no terceiro, porque a rampa avariou. Não consegue ir ao quarto, porque não sei o quê… Ou seja, isto é muito complicado para determinadas pessoas simplesmente saírem de casa”, esclarece Catarina.

"Hoje em dia, eu tenho que pensar em tudo. E não é por causa da minha deficiência, é porque não há acessibilidade para acomodar a minha existência enquanto pessoa com deficiência."

– Catarina Oliveira

No caso dos transportes públicos na Invicta, também Beatriz salienta que, mesmo que os autocarros tenham as rampas adaptadas, a entrada nem sempre é acessível para pessoas de cadeira de rodas. Isto porque, para que a rampa funcione, é necessário que o motorista a abra ou que seja informado que a tem de abrir, no caso de ser automática. Com isto, “às vezes, com pressa, os autocarros passam e nem reparam que está ali uma pessoa que precisa de entrar. As condições para eu entrar existem, mas é sempre preciso que a pessoa que está comigo fale com o motorista para eu conseguir entrar”.

Nos comboios, Beatriz refere que “só tenho pontos negativos a mencionar”. Isto porque, no caso de uma pessoa ter alguma deficiência motora, é necessário reservar uma viagem com 6h de antecedência, para que o revisor, à chegada, possa abrir a plataforma. “Há dois lugares reservados para pessoas com deficiência numa única carruagem, que é o Alfa. Acho absurdo”, sublinhou. Consequentemente, “quantas pessoas é que se calhar querem deslocar-se no Alfa e não podem porque, entretanto, aqueles dois lugares já estão ocupados por outras duas pessoas que também precisam?”

"Eu pertenço a uma minoria e, querendo ou não, as minorias têm menos direitos do que as outras pessoas. Ou melhor, nem sempre se trata de ter mais ou menos direitos. Há vezes em que eles simplesmente não são cumpridos."

Beatriz Baptista, aluna da FLUP

Isto dificulta a vontade que Beatriz tem de querer ser “o máximo possível independente”.

Falta de acessibilidade para pessoas cegas

Aureliano Moreira, de 85 anos, reside no Porto há cerca de 70 anos e é cego desde os primeiros meses de vida, devido a uma infeção de varíola. Tal como Catarina, aborda o capacitismo, onde a experiência fala por si: “hoje a coisa está mais evoluída, realmente, já não há tanta discriminação, mas, na altura, havia sempre aqueles preconceitos. Na altura, era uma admiração um cego fazer uma coisa assim mais “sal”, aquilo fazia dele uma pessoa extraordinária. Não era nada extraordinário, mas, enfim, agora, as pessoas já estão mais habituadas, já se anda na rua, já se anda por aqui e por acolá”.


Aureliano Moreira. Imagem: Camila Teixeira

Entre as várias dificuldades enfrentadas por pessoas com deficiências visuais, Aureliano refere a existência de obstáculos e atitudes inconscientes como “aqueles carrinhos de levar o lixo”, automóveis a ocupar os passeios ou “buracos” de obras que não estão devidamente sinalizadas: “Na rua abriram um buraco, deixaram aquilo aberto, não estava ninguém a ver-me passar e caí lá dentro. Felizmente não me magoei”.

São muitas as irresponsabilidades que prejudicam a vida de pessoas cegas. Atualmente, o congestionamento das vias públicas com o aglomerado de trotinetes constitui um perigo iminente para todos aqueles que não conseguem ver: “As trotinetas são uma coisa por demais. Põem-se em qualquer lado, de qualquer maneira. Contra a parede, no meio do passeio. E as pessoas não pensam nos problemas que podem existir para muitas pessoas, não pensam nos outros. Uma vez eu não contava com aquilo porque já tinha passado lá uma hora antes e estava tudo limpo, então ia à vontade. A bengala esbarrou na trotinete, eu desequilibrei-me, caí para a rua e parti o pulso”.

A cidade do Porto está, atualmente, inundada por obras e quem é deficiente visual está ainda mais suscetível aos perigos que delas advêm.

Além destas condicionantes, relata que, realizar tarefas simples como tratar de questões burocráticas em estabelecimentos públicos ou, por outro lado, ações como idas ao supermercado mais próximo, implicam que tenha sempre de se fazer acompanhar por um familiar. Só assim é que garante a sua própria segurança.

"O problema é que há vários obstáculos, várias barreiras que realmente deveriam deixar de existir. Mas, por vezes, não obedecem às normas. Por exemplo, deveria haver mais sinais sonoros nos semáforos, enfim, em todo o lado. Há poucos."

– Aureliano Moreira


Aureliano Moreira (história de vida)




Falta de acessibilidade para pessoas surdas

Armando Baltazar, de 73 anos, foi o primeiro cidadão surdo a ser eleito para um cargo público na Câmara Municipal do concelho de Valongo, em 2013. É Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Surdos e tem um cargo de chefia na Associação Portuguesa de Surdos (APS). Esta última trata-se de uma Instituição Particular de Solidariedade Social de apoio à pessoa surda no contacto com a família, na defesa dos seus interesses, da língua gestual e da sua promoção.


Armando Baltazar. Imagem: Bruna Pinheiro/O Essencial

Para Armando, um dos maiores problemas em Portugal é a falta de apoios por parte do Estado, quer no setor do ensino , quer de serviços públicos como a segurança social. Isto porque, segundo ele, antes das pessoas surdas se dirigirem a cada um destes estabelecimentos, vêm-se obrigadas a enviar um e-mail com alguns dias de antecedência, de modo a garantir que estes locais tenham intérpretes de língua gestual para que a comunicação seja possível. “Eu, por exemplo, não tenho problemas, porque oralizo e, quando não entendo bem o que me dizem, peço para escrever. Há muitas formas de melhorar (a comunicação), as novas tecnologias atualmente já podem ajudar a suprimir fantasticamente essas barreiras, mas é preciso que o Estado ensine isso”, garante António, apesar de não sofrer com o problema.

Em 2023 surgiu o primeiro manual escolar para pessoas surdas, onde é introduzida a tradução em língua gestual portuguesa. Apesar de esta ser a terceira língua oficial do país, não é uma disciplina obrigatória nas escolas.

Armando salienta ainda estar a pressionar a Assembleia da República, para que “a língua gestual portuguesa, seja considerada uma língua oficial do Estado português.”, já que, na sua opinião, apesar da teoria ser inclusiva, a realidade não o é. Para o chefe da APS, a língua gestual portuguesa é apenas usada como uma ferramenta que as pessoas surdas têm para aceder à educação. Neste sentido, reforça que o estudo da língua gestual como uma disciplina obrigatória nas escolas primárias deveria ser uma questão primordial. “ O estilo educativo para as pessoas surdas tem muito que seguir. As crianças aprendem a língua gestual de uma forma fantástica, porque ainda estão pouco viciadas no som. Quanto mais anos passam, mais dificuldades têm".

Segundo um artigo publicado pela SIC Notícias, as crianças surdas têm mais dificuldades de aprendizagem e apresentam piores resultados escolares quando inseridas num regime educacional normal, em comparação com aquelas que estão em escolas adaptadas.

De forma a dar resposta a esta problemática, o Estado português criou uma rede “de escolas de referência para a educação bilingue de alunos surdos (EREBAS)”. No entanto, para os pais destas crianças, esta solução não é a ideal, visto que muitos deles têm de se deslocar para fora da sua zona de residência e os apoios que deveriam existir não são aplicados. Aspetos como a disparidade das leis, a demora na colocação de professores e intérpretes e os problemas de monitorização das práticas são alguns dos problemas apontados.

Também a Polícia de Segurança Pública (PSP) tem aderido a ações de formação de língua gestual portuguesa para os seus agentes, sendo pioneira em toda a Europa. Por outro lado, as Câmaras Municipais estão também a investir cada vez mais no uso da mesma tanto em “cerimônias oficiais, transmissões de reuniões de executivo e assembleias municipais.”




O papel do município na acessibilidade

O vereador Fernando Paulo, responsável pelo Pelouro da Coesão Social da Câmara Municipal do Porto (CMP), explicou a’O Essencial que a Câmara “procura tudo fazer para que a cidade seja para todas as pessoas, para todas as idades e que possa ser o mais amigável possível para todos, não só para idosos, como para as pessoas com deficiência ou qualquer incapacidade”. “A perspetiva tem que ser de olhar para a cidade e construí-la para todas as pessoas, para que todos possam ter o direito à cidade e possam, de facto, também transpor barreiras. Nós sabemos que, naturalmente, este é um objetivo e é importante ter esta consciência e incorporar, de facto, esta necessidade nas políticas públicas, mas é óbvio que nem sempre foi assim”, esclarece.


Fernando Paulo. Imagem: Público

A cidade do Porto tem percorrido um longo caminho no que diz respeito à acessibilidade, mas ainda há medidas que são necessárias concretizar. O vereador recorda que “nos últimos anos, através do urbanismo, tem vindo a ser adotado um conjunto de medidas no sentido de tornar a cidade mais acessível, quer do ponto de vista de rampear os passeios e eliminar barreiras, que muitas vezes também há, quer no espaço público, criando um conjunto de medidas que tornem a cidade acessível para todos”. Fernando Paulo realça que este é um objetivo que o município continua a percorrer e, para isso, “tem vindo a tomar um conjunto de medidas e políticas públicas que possam ir ao encontro das necessidades das pessoas e, sobretudo, procurar mitigar os efeitos derivados dos problemas que subsistem”.

As queixas relativas à acessibilidade e às “barreiras físicas e arquitetónicas” são comuns a todos os entrevistados e os obstáculos à mobilidade que encontram na cidade são muitos. Fernando Paulo reconhece que a questão da acessibilidade “é uma área que continua a necessitar de uma ação prioritária”. Além disso, identifica que a cidade do Porto tem “no centro histórico muitos estabelecimentos com barreiras arquitetónicas e a própria tipografia da cidade também não ajuda”. “Temos procurado criar percursos acessíveis, mas é óbvio que há situações difíceis de vencer”, assume.

Ainda assim, sublinha que “a Câmara tem sido exemplar a esse nível” e que, apesar de tudo, “está a ir num bom caminho”, no sentido de resolver estes impedimentos. Relativamente aos transportes públicos, o vereador afirma que, hoje em dia, a rede STCP e a Metro do Porto “são amigas das pessoas com deficiência”. A região da Área Metropolitana do Porto (AMP) registou os melhores índices de acessibilidade rodoviária e ferroviária em Portugal, no ano de 2021, de acordo com um estudo realizado pela Associação Francisco Manuel dos Santos. Não obstante, no que respeita à acessibilidade destinada a pessoas com deficiência, as condições não são, muitas vezes, as ideais, como ficou patente nos relatos anteriores de Catarina e de Beatriz.

Muitos dos serviços públicos não estão preparados para atender pessoas com deficiência e no Porto isso não é exceção. Quando questionado, Fernando Paulo reconhece que “nem todos os serviços públicos têm essa acessibilidade”, mas que também cabe ao Estado “criar as condições para que todas as entidades, públicas ou privadas, tendencialmente, possam garantir estes serviços”. O vereador refere que a Câmara é responsável pelos serviços que tutela e que o Município do Porto tem, por exemplo, um intérprete de língua gestual para garantir a acessibilidade a todas as pessoas e disponível para colaborar com as pessoas com deficiência auditiva.

Sobre as medidas que a Câmara já adotou para melhorar o serviço de atendimento a pessoas com deficiência, o responsável pelo Pelouro da Coesão Social sublinha a importância da criação do Balcão de Inclusão, que considera “uma medida importante para garantir um serviço de atendimento especializado direcionado a pessoas que têm deficiência”.

Em 2018, o atual presidente da CMP, Rui Moreira, extinguiu a provedoria do cidadão com deficiência, que foi substituído pelo gabinete de inclusão. Em 2021, o movimento de Rui Moreira votou contra à proposta do PS para o Porto voltar a ter um provedor do deficiente, justificando que a função já era assegurada pelo provedor do munícipe.

O Balcão de Inclusão permite atender e aconselhar pessoas com deficiência, incapacidade ou com necessidades especiais e “garante um atendimento personalizado e qualificado”. Além disso, presta apoio a pessoas com deficiência em questões de emprego, formação profissional, ajudas técnicas e assuntos relacionados com a acessibilidade. Fernando Paulo revela que o balcão “tem permitido identificar os principais constrangimentos e necessidades das pessoas com deficiência ou incapacidade e também procurar, a partir daí, despoletar respostas específicas”.

O vereador da Educação e Coesão Social acredita que “deve ser o Estado a dar também o exemplo” e garantir os serviços de acessibilidade aos seus cidadãos. “Acho que o Estado deve criar as condições para que todas as entidades, públicas ou privadas, de facto, possam garantir estes serviços”, afirma. “Nós vamos tendo aqui avanços muito grandes, mas acho que este é um trabalho que não pode ter recuo, tem que continuar, com muita persistência”, conclui.


A acessibilidade é um direito fundamental na vida das pessoas. Não só para aqueles que estão numa cadeira de rodas, mas também para quem é cego ou surdo. Estes são apenas alguns dos exemplos do universo de deficiências que condicionam o quotidiano de milhares de pessoas em Portugal. Apesar de já terem sido decretadas várias leis que protegem e garantem a igualdade de oportunidades para pessoas com deficiência, existem ainda alguns cenários que as negligenciam. A Câmara Municipal do Porto assume os constrangimentos provocados pelas medidas de preservação da Identidade Cultural Urbanística, que impedem a modificação da estrutura original do centro da cidade. Mesmo com dificuldades, a cidade do Porto tem evoluído no sentido de se tornar um lugar mais acessível para todos. Ainda assim, há um longo caminho a percorrer.






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