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  • Bruna Pinheiro e Inês Silva

Carlos Fiolhais: "É uma bela senhora a Física, continuo junto a ela. Somos feitos um para o outro"

Atualizado: 17 de jan.

Carlos Fiolhais é físico teórico, professor universitário jubilado da Universidade de Coimbra e um dos maiores divulgadores de Ciência em Portugal. O Essencial conversou com o cientista sobre a longa carreira dedicada à física e sobre os desafios da ciência.


Imagem: Carlos Fiolhais

Por que é  que escolheu o ramo da física, da ciência, dentro de tantos outros ramos que poderia ter escolhido?


Eu entrei em ciência, em particular na física, quando era jovem, muito mais jovem do que hoje. Comecei a ler livros de divulgação da ciência, que diziam que o conhecimento era uma conquista humana, que era prolongada, que se podia fazer. Por outras palavras, em vez de a ciência aparecer feita como aparecia nos livros escolares, em que uma pessoa tinha de repetir aquilo que nos diziam e a gente não sabia muito bem de onde é que aquilo vinha, eu aprendi nos livros de divulgação científica de grandes mestres, como o Rómulo de Carvalho, que ficou conhecido, ou António Gedeão, que era também poeta e uma pessoa de física. Aprendi nesses livros que a ciência era algo que era uma construção humana e eu achei aquilo fascinante. Achei até que aquilo era uma aventura. E o meu desejo de jovem foi participar na aventura, e também descobrir, investigar. Portanto, fui para a ciência porque achava que ainda se podia descobrir mais segredos do universo. Pode parecer isto um bocadinho ingénuo, mas foi o que pensou um rapaz que não tinha ideia nenhuma do que era a ciência, do que era a física, mas à medida que fui entrando nesses domínios e conhecendo melhor, fui-me apaixonando pela disciplina que escolhi. De facto, eu podia ter escolhido outra coisa qualquer, porque entrei no universitário em 1973 e nessa altura não havia qualquer barreira à entrada de nenhum curso, nem mesmo de medicina. Podia ter ido para qualquer coisa e não tinha na família pessoas sequer até licenciadas que me pudessem ter sugerido outros cursos. O meu pai até me perguntou “mas isso serve para quê, o curso de física?”. Eu respondi “não sei”, fui honesto. Mas o que é certo é que eu nunca tive dificuldades depois com a colocação. Ainda não tinha acabado o curso, já me tinham posto um papel para entrar como assistente para a Universidade, para dar aulas. Aliás, eu já dava aulas para todos dentro da Universidade. Pouco depois, deram-me uma bolsa para ir para o estrangeiro, para a Alemanha, doutorar-me em Física e voltei depois como professor da Universidade de Coimbra, onde fiz uma carreira de mais de 40 anos. Saí como professor jubilado há dois anos e são mais de 40 e tal anos sempre, sempre na área da Física, o que significa que foi uma área bem escolhida. Não me arrependi de modo nenhum.

"É uma bela senhora a Física, continuo junto a ela. Somos feitos um para o outro."

Deu a sua última aula na Universidade de Coimbra há cerca de dois anos, mas mesmo assim continua a ensinar e divulgar ciência. Desde então o que é que acha que mudou? A vontade de aprender e partilhar conhecimento ficam para sempre?


Eu continuo a ser o mesmo, alguém que gosta de aprender e de ensinar. O professor acima de tudo é um comunicador, um comunicador de saber, um comunicador de humanidade. Mas a diferença é que já não tenho aqueles cursos com 20 ou 30 alunos de física onde ensinava mecânica quântica. Eu gostava porque eram também pessoas apaixonadas pela física, que queriam também entrar nesse mundo que eu um dia tinha entrado dos mistérios do átomo, do núcleo atómico, das partículas do cosmos. Agora, tenho mais tempo para a comunicação de ciência, que é uma forma também de ensino informal para todos. Se numa escola me convidam e se puder vou. Além disso, escrevo artigos que me pedem, escrevo para os jornais, vou à rádio e às televisões. De algum modo, o meu universo cresceu. Antes o tempo era mais limitado, agora sou eu mais a gerir a minha agenda total. Enquanto puder, tenho muito gosto em transmitir aquilo que sei do mundo. É preciso ter espírito crítico, que é o essencial da ciência. O essencial é perguntar, mas duvidar das respostas que são dadas e que parecem óbvias. Isso é das coisas que eu acho mais fascinantes na ciência, é não acreditar numa coisa só porque alguém nos diz. Tentar perceber porquê, tentar fazer as nossas próprias perguntas e ver se as respostas são sólidas. As respostas da ciência nunca são definitivas, as respostas da ciência são sempre provisórias porque podemos sempre fazer melhor.


Nesse sentido, acredita que precisamos de cada vez mais bons comunicadores de ciência

capazes de passar a mensagem e desmistificar aquilo que pode parecer um bicho de sete cabeças? 


O país nestes últimos 50 anos evoluiu muito e o mundo também. Aliás, o país evoluiu muito

por causa do empurrão que todo o mundo deu. A grande transformação que eu vejo nestes anos vem da ciência e tecnologia. Nós estamos a usar agora meios de comunicação que há 50 anos eram inimagináveis, não havia telemóveis, não havia computadores pessoais, não havia internet, não havia nada disso. Vocês estão numa geração que é uma geração que tem o mundo na ponta das mãos e isso é uma grande mudança e abre-nos muitos horizontes. Enquanto nós estávamos confinados àquilo que os professores e os livros transmitiam, vocês têm as escolas do mundo. O facto de haver todo este novo mundo, este admirável mundo novo, faz com que muitas mensagens possam ser transmitidas sem terem nenhuma base de sustentação. Vivemos um mundo da mentira, do engano dos feitiços, dos atributos de conspiração. De algum modo, virou-se o feitiço contra o feiticeiro porque o  que chegou a acontecer voltando no tempo atrás, foram os cientistas e os engenheiros que criaram a internet e até para trabalhar em conjunto. A World Wide Web não foi feita para fazer comércio, foi feita para os físicos e os cientistas trabalharem em conjunto. A internet é o espelho do mundo, de algum modo há aqui possibilidades extraordinárias de comunidade, até de solidariedade de afirmação de valores humanos. Por outro lado, também o pior da humanidade pode lá expressar-se. Nós vivemos através da internet um tempo de expansão do oposto da ciência, da pseudociência. Por um lado, há mais mundo mas, pelo outro lado, o mundo está mais confuso e isso coloca-nos desafios. Do ponto de vista da comunicação de ciência, é um desafio muito grande. Os cientistas para fazer ciência têm de primeiro comunicar uns com os outros e depois têm de comunicar com o público pela razão simples de que a ciência não é deles, a ciência é de todos. O conhecimento é uma coisa da humanidade, não é uma coisa dos cientistas. Têm a obrigação de entregar-nos aquilo que alcançam. Isso sempre foi assim e vai continuar a ser assim, mas agora há exigências maiores, a ciência cresceu. Há muito mais gente com acesso ao conhecimento,

mas também há esta questão de uma pessoa carregar num botão e do outro lado do mundo o disparate chegar à velocidade da luz. Temos a obrigação através da educação, quer formal na escola, quer informal fora da escola, de dotar os cidadãos de capacidades mínimas para conseguirem lidar com este mar de informação. Coisas tão simples como se há é coisa sensacional ter cuidado, porque geralmente as coisas sensacionais são feitas para chamar a atenção. Raramente um título sensacional corresponde ao conteúdo e nós estamos muito tentados a ir atrás dessas coisas todas. Agora com o Covid, por exemplo, o problema ainda não tinha chegado aqui e chegaram as notícias mais variadas. Não tinha chegado a pandemia, mas já tinha chegado aquilo a que se chamou infomedia, que eram informações disparatadas sobre as coisas mais idiotas. E isto circula e há gente que acredita. Isto significa que nós da ciência, os professores e quem está em comunicação, não só os jornalistas, temos muitas responsabilidades e um futuro pela frente na comunicação da ciência.


Acredita que a ciência tem um lugar de destaque no nosso país ou é uma realidade ainda muito distante?


Sim, eu disse que cresceu em Portugal e ainda bem. Não podia deixar de ser assim porque era quase insignificante. Sempre houve ciência em Portugal, mas era a ciência que se importava. A ciência era feita noutros lados e chegava aqui tarde, em segunda, terceira ou quarta mão e não era para todos, de modo nenhum. Era só para uma elite que tinha acesso a certas escolas. Hoje em dia, a ciência já se faz aqui também por muita gente. Há investigação em Portugal em várias áreas, eu diria em todas as áreas. Agora, o que é que se passa? Este crescimento que foi muito bom não correspondeu ainda, a um impulso em vários sítios. Podia refletir-se mais na cultura em geral. Portugal ainda não é um país que tem uma cultura muito científica, ainda é um terreno muito fértil para essas conclusões de que eu falava. É um sítio ainda de superstições, de tradições não justificadas, etc. Por outro lado, a ciência em Portugal não chegou ainda com força à economia. Com certeza que há empresas portuguesas que dependem da ciência e tecnologia, mas o que é certo é que nós não enriquecemos assim tanto como outros países que têm níveis de vida superiores e que o segredo é o conhecimento científico e tecnológico. Nós temos o segredo para ser ricos mas não somos ainda ricos. Uma das razões é porque as empresas não estão a ter capacidade ou vontade de contratar, de pôr ao seu serviço os jovens que foram formados no nosso sistema de ensino ao mais alto nível. Enquanto eu não tive problemas nenhuns em obter emprego, agora há uma grande dificuldade de acesso a emprego compatível, que saiba aproveitar as capacidades daquela pessoa. Isso faz com que, neste mundo global, muitos jovens altamente capazes saltem as fronteiras. Basta saltar a fronteira de terra mais próxima que temos para imediatamente os salários subirem. Um cientista ou engenheiro pode ir para qualquer sítio e vai ganhar duas, três vezes mais e isso é muito tentador e não é só ganhar mais, são as condições de trabalho. É ser acolhido, saberem tirar o melhor dele e confiarem nele.

É isso que nós precisamos aqui para o nosso futuro, precisamos de dar oportunidade aos jovens, confiar mais neles, deixar que tomem conta da casa. Quando eu saí há dois anos, disse “eu saio antes” porque gostaria que os mais jovens tivessem as oportunidades que eu tive, mas não é isso que está a passar. O meu lugar não foi substituído.

"É imperativo que haja renovação de gerações. É assim que o mundo avança, é assim que a biologia se faz. Os mais jovens têm o mundo à sua frente e agora em Portugal é que não têm assim tanto mundo à sua frente." 

No dia da cultura científica, o governo anunciou um investimento de 93 milhões de euros na ciência, mas a despesa pública em investigação não ultrapassa 0,32% do PIB e está ao nível de 1991. Considera que o investimento na ciência tem ficado aquém?


Não é tão aquém, mas sim muito aquém, muito aquém mesmo. O governo pode dizer o que quiser, mas não é credível. Aliás, o governo já não existe, caiu. É de facto uma grande ilusão, porque nós pensámos que o governo andava com a ciência na boca. Estou a falar do atual, mas se falar dos anteriores também não mudava muito. Infelizmente, andam sempre a falar de ciência, de modernização do país mas depois vai-se a ver e o investimento é minúsculo. Isto porquê? Porque o investimento tem de ser comparativo. Não podemos investir tanto como os países que são maiores e mais ricos. Tem de se ver a percentagem do PIB, a percentagem da riqueza nacional. Há países mais ricos do que outros, infelizmente Portugal não é dos mais ricos, até na própria União Europeia. A percentagem [de investimento] em Portugal neste momento é 1,7% do PIB, é uma pequena migalha. A média da União Europeia é de 2,3%. Portanto, Portugal está abaixo da média da União Europeia e está assim há muito tempo. É incrível, em 2009, por exemplo, a percentagem que tínhamos era 1,6% e agora é 1,7%, praticamente está estagnado há mais de 3 anos. Não há um aumento efetivo e também o próprio PIB não tem subido muito. Por outras palavras, falam da ciência, mas a ciência é de facto uma parceira pobre à mesa do Orçamento de Estado. Há outra coisa que às vezes se pode confundir nas estatísticas. Desse 1,7%, a maior parte é de investimento privado, de empresas, não é investimento público. O investimento público ainda tem evoluído menos. Se o total evolui pouco, o investimento público evolui menos, se é que evolui. Porque a maior parte é de empresas que querem ter um benefício fiscal.  Então, não havendo controlo sobre isso dizem que investem isto, investem aquilo, compram um software e treinam mais pessoas e dizem que é um investimento em ciência e tecnologia. É uma maneira um bocado caricata de dizer que é um investimento e então esses números das empresas têm subido porque há benefícios fiscais para declararem. Pagam menos impostos se declararem esse investimento em ciência e tecnologia. À conta disso, o [ensino] público tem tido uma evolução muito desfavorável, o que se vê no financiamento das Universidades e dos Politécnicos. Porque a maior parte dos investimentos em ciência e tecnologia são para pagar pessoas, sempre foi assim. É para pagar recursos, aquilo que se chama recursos humanos. Não é para comprar reagentes, nem para fazer edifícios ou comprar um aparelho caro, que não se compra todos os dias. A questão é que a maior parte do financiamento é para pagar o trabalho dos investigadores. Em Portugal, há cerca de 50 mil investigadores mas têm de ser pagos, têm de viver. Nós vemos que as universidades não estão a crescer num número decente, não há oportunidades para os jovens, não está a haver renovação geracional, porque não têm dinheiro. As universidades têm um orçamento muito contínuo, nem sequer são premiadas por apostarem na ciência e tecnologia. A universidade é paga apenas pelo número de alunos, no fundo é uma fábrica de passar canudos. Quanto mais entrarem, mais dinheiro têm. O orçamento das universidades basicamente é dado pelo número de alunos e, portanto, não interessa se fazem muita ciência, por isso é que as universidades não querem contratar investigadores. Querem só contratar professores porque o prémio que elas têm é apenas pelos alunos que as procuram, não é pelos trabalhos que eles produzem, não é pelo apoio que dão à cultura científica, pelo apoio que dão à indústria, à inovação. É pelo número de alunos. Temos de investir muito mais mudando o sistema. Apesar de tudo, a ciência e as universidades são sítios onde ainda há uma ética, é preciso que esse sistema seja vigorado. É preciso que haja confiança nos sistemas de ensino superior, no sistema da ciência em geral e estes dois sistemas deviam até idealmente estarem mais unidos. É preciso investir mais e organizar melhor o sistema. Não é só investir mais, não é só deitar dinheiro para cima do sistema. É organizar melhor o sistema. Esperemos que o próximo governo o faça porque os anteriores foram incapazes de o fazer, foram nesta área uma grande desilusão. Na ciência, a recuperação não está bem à vista. E quem poderia beneficiar disso são os jovens que agora estão a acabar os seus cursos, que estão a acabar os seus doutoramentos, que estão apaixonados pela ciência e gostam de trabalhar em ciência. Todas essas pessoas estão a ser prejudicadas porque não encontram, lá está, o reconhecimento. Oportunidades para exercer ou mostrar os seus dons. Esse investimento que é tão necessário, que faz tanta falta, seria muito importante para haver uma maior divulgação da ciência e para haver mais facilidade em comunicar. O orçamento de ciência pode ser pouco, mas podemos dizer “5% disso é para a comunicação de ciência”, por exemplo. Isso faz-se noutros países.

"Por outras palavras, a ciência, pela ciência, não vale. A ciência não vale apenas por si própria. A ciência é para chegar às pessoas."

Há muitas maneiras de imaginar, de levar a ciência para fora. Mas isso tinha de ser uma parte do orçamento. O orçamento de ciência não é apenas para cientistas, é também, ou devia ser, para comunicadores de ciência, que podem ter formação em jornalismo, ou em comunicação em geral. Ou pode ser para gestores, pessoas que tomem conta da organização da ciência. Temos de pensar nas populações também de todas as idades, incluindo, os cidadãos mutantes, todos nós, que estamos confrontados com coisas que nos perturbam. Alterações climáticas, estamos confrontados com a inteligência artificial, com questões de edição genética, todos grandes problemas que fazem a ciência e que envolvem a ética e decisões para as nossas vidas. Precisamos de ter conhecimentos mínimos de ciência para percebermos melhor isso, o que é o que são as alterações climáticas, o que é a inteligência artificial, o que é a edição genética, são apenas três exemplos. Talvez seja um dos maiores desafios com que a humanidade está confrontada. Por isso, é vital a criação de ciência. Nós temos, por exemplo, comentadores de tudo. Há comentadores de guerra, há comentadores de moda, há comentadores de mexericos, há comentadores de tudo, mas não vemos comentadores de ciência. E os sítios mais desenvolvidos têm. É essa interação com o público, explicando, por exemplo, agora que temos um problema em Portugal com o escândalo do lítio, o que é o lítio, o que é que se faz, onde é que há, que prejuízos tem. Se perguntarem a um cidadão comum, o que é que sabe do lítio, as pessoas não sabem absolutamente nada.


Regressando aos desafios de comunicar ciência, quais é que acha que são os maiores desafios?


Não há um sítio, não há um lugar, não há um meio que diga que seja melhor do que o outro. Os meios têm de ser variados, têm de se adaptar aos públicos, têm de usar as novas tecnologias, com certeza, e ainda não vimos nada. E o mundo continua a dizer, obviamente, que vão aparecer novas coisas, vai haver criatividade. Infelizmente, nós importamos mais do que exportamos, mas podemos também ser criativos e podemos entrar mais nesse processo de usar a tecnologia para a comunicação. São incríveis as novas capacidades de comunicação que hoje temos usando a tecnologia. Quais são os problemas? É que a comunicação também pode ser feita e é feita para pessoas que querem apenas vender produtos, o que não é mal nenhum, mas quando os produtos são enganosos, têm efeitos enganosos. São coisas que não fazem bem a coisa nenhuma e até podem fazer mal. Nós vemos isso em medicinas alternativas, em coisas esquisitas de todo o tipo. Isso a certa altura causa um grande caos, causa uma grande confusão. Eu não estou a ver solução para isso, não é fácil. A única solução, mas não é uma solução para agora, que usamos uma vez, é uma solução para sempre e que vai continuar a ter problemas, é melhorar a educação por vários meios para as pessoas terem autonomia para pensar, para as pessoas poderem escolher. Mas a gente sabe também que todos nós temos uma margem, umas maiores que outras, de irracionalidade. Por muita capacidade que temos racional, de saber pensar, organizar o pensamento de acordo com os dados e usar aquilo que se sabe para poder prever novas situações, o que é certo é que nós também muitas vezes respondemos a impulsos que são totalmente irracionais e vamos atrás de coisas que, se pensássemos um bocadinho, concluiríamos que aquilo não tem conteúdo nenhum. Somos atraídos, às vezes, pela forma, em detrimento do conteúdo e temos instintos, digamos assim, selvagens, e eu próprio falo contra mim. Já dei por mim a clicar em coisas que eu devia ter tido juízo. O que é que aprendi com aquilo? A pessoa esteve a satisfazer algum tipo de curiosidade que não é a melhor. Não é a melhor, há muitos tipos de curiosidade. Neste caso, está a haver a curiosidade pela estupidez humana, é a curiosidade de até onde é que vai a estupidez humana. Mas a internet está encharcada disso, está completamente inundada dessas coisas, e misturada com outras. Uma pessoa vai a um site de notícias e tem para lá no meio todos os horóscopos, a vida dos artistas, está lá tudo misturado. A certa altura nem sabe se é notícia, se é publicidade. Um dos problemas que temos é distinguir o que é publicidade do que é de facto informação. Mesmo revistas, jornais que têm obrigação e têm códigos para distinguir,  há revistas que têm páginas e páginas e páginas que são de publicidade, mas têm todo o aspecto de ser notícia. Para não falar de notícias mesmo que de algum modo foram publicadas porque não passam de publicidade. Infelizmente, com a falta de falta de jornalistas que temos, há muita tendência dos órgãos de informação a colocar coisas que lhes vêm, comunicados de imprensa que lhes vêm do governo, que lhes vêm de instituições, que lhes vêm de empresas e colocam aquilo, sem se interrogarem minimamente o que é que aquilo significa. Então temos as mensagens, as mensagens mais variadas, às vezes de auto-publicidade, e que passam como notícias. As pessoas não vão ver a relevância disso e isso é uma das dificuldades. Tem de haver alguma curadoria, num mundo em que qualquer um pode ser emissor de informação.


Como o professor estava a dizer há pouco, a cultura científica e a ciência são das chaves fundamentais para sabermos mais sobre o mundo. Quais foram as maiores surpresas que a ciência já lhe deu?


É muito interessante a pergunta, porque a ciência dá tantas surpresas, no sentido em que ficamos a saber coisas que nós não sabíamos. Toda a ciência é isso, porque é muito difícil dizer “a surpresa é esta, ou a surpresa é aquela” Eu, por exemplo, comecei por estudar física nuclear e fiz uma tese de doutoramento nessa área, mas depois, enfim, há surpresas. Surpresas boas e surpresas más. Eu fiz o doutoramento em 1982. Em 1986, houve um evento e uma surpresa má que foi Chernobyl. Chernobyl foi uma explosão devido a um mau comportamento humano, devido a uma falta de atenção humana, falta de competência, e que libertou uma nuvem radioativa, e houve um incêndio, e houve mortos, e a física nuclear ganhou uma fama muito má. E eu, a certa altura, até mudei de ramo, porque havia pouco financiamento naquela área, e eu, com aquilo que sabia, fui trabalhar noutra área da física, fui para a física molecular. E essa foi uma surpresa má que me aconteceu. Claro que nós aprendemos sempre com os erros, isso foi um grande erro, mas depois tive surpresas boas, vou dar o exemplo de uma que tem a ver com o meu próprio trabalho. Aquilo que eu tinha aprendido na física nuclear, que é uma escala muito pequena do núcleo atómico, é uma coisa minúscula, o núcleo atómico está para um lado, mais ou menos, como uma cereja está para um campo de futebol. Uma coisa assim, muito pequena. Depois, passei a trabalhar com agregados de átomos. Coisas muito maiores, moléculas, no fundo. Aprendi que os átomos, vou dizer isto de uma maneira muito simples, fazendo comunicação de ciência aqui, em direto e ao vivo, os átomos gostam uns dos outros, significa que gostam de estar juntos, todos gostam, uns gostam mais, outros gostam menos, mas todos gostam de se agregar, qualquer átomo se liga a outro. E o que é que eu aprendi? Aprendi que se podia arranjar átomos de qualquer coisa, por exemplo, metálicos, com 100 átomos, com 1000 átomos, o que quer que seja, e que podíamos também parti-los. Isto é, a energia que se libertava não é tão grande quanto a do núcleo atómico, mas tudo aquilo que eu aprendi da cisão do núcleo atómico podia ser feito para a cisão de agregados atómicos. A energia é um milhão de vezes menor, mas parte-se com laser, e é muito interessante. Não é tanto do ponto de vista tecnológico, mas do ponto de vista científico, as coisas que se podem aprender, e que eu já sabia da física nuclear e que pude  aplicar à física atómica e molecular.

"A física e o mundo são um só."

Não é que já não soubesse, mas ficou comprovado com o exemplo que a ciência tem uma grande unidade e uma grande coerência, e isso é belo. Mudei de escala do objeto, mas não tive necessidade de frequentar uma escola de reconversão profissional. A escola que eu tinha ido servia-me para tratar os objetos. Eu descobri, na prática, no meu processo de aprendizagem, que o mundo é variado, organiza-se de diferentes maneiras nas diversas escalas, mas as leis da física são leis que têm aplicação em escalas muito, muito diversas. E isso é consolador. É uma das coisas que eu gosto na física, porquê a física e não outra ciência, porque a física trata do universal.A física trata de mostrar como uma maçã para a Terra e a lua está sempre a andar à volta da Terra, está sujeita à força de atração da Terra, pela condição inicial que a fez estar em órbita. Mas a força está sempre a ser puxada para a Terra. Isso é uma mensagem de unidade da natureza, é uma mensagem de dizer que o mundo é um sítio ordenado. Uma coisa é dizer ou ler isso, e outra coisa diferente que me aconteceu a mim foi descobrir isso no meu trabalho, que mudo de assunto na física e aquilo que eu sei continua a servir e as coisas que eu vou descobrir, ainda que pequenas, estão ao meu alcance, porque o mundo sendo diverso acaba por ser um só, por ter leis que são universais e que são leis de grande alcance. Não é que seja uma surpresa, mas é sempre uma maravilha perceber que o mundo está feito de uma maneira inteligível, de uma maneira que não é esquizofrénica. O mundo não é esquizofrénico, não se porta de uma maneira agora e depois de outra, aqui de uma maneira e do outro lado de outra maneira. O mundo, felizmente, obedece a leis universais.


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