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Rui Rio: “Sabendo o que sei hoje, eu nunca teria ido para a política”

Atualizado: 19 de jan.


Imagem: Filipa Ferreira/O Essencial

Foi o 18.º presidente do Partido Social Democrata (PSD) de 2018 a 2022. Depois das eleições legislativas, escolheu cessar funções com o partido com que diz ter uma relação mesmo antes deste ter nascido. Antes disso, liderou a Câmara Municipal do Porto durante 12 anos e é, até ao momento, o político que mais tempo ocupou o cargo. Praticou atletismo, era apaixonado por corridas de carros e teve uma banda na juventude. Em entrevista a'O Essencial, falou sobre a vida pessoal e política, a relação com os pais e os desafios que enfrentou ao longo do seu percurso.

Quem é o Rui Rio?

Eu comecei a minha carreira profissional aos quatro anos. Fui para o Colégio Alemão do Porto aos quatro anos. O normal era entrar-se aos seis anos para a primeira classe, mas, para tomar contacto com a língua, tinha de se entrar aos quatro para o Kindergarten, que é o género infantil. Depois, fiz lá o Ensino Secundário e fui para a Faculdade de Economia do Porto, onde acabei o curso de Economia no ano de 1982, há 41 anos.

Depois fui trabalhar para um pequeno grupo que tinha uma empresa comercial e duas industriais. Estive lá nem um ano porque fui para a tropa. Estive quase um ano e meio na tropa e, entretanto, regressei a esse grupo. Na altura, eu era o economista júnior. Daí, fui para o Banco Comercial Português, que estava na fundação. Era o funcionário número 290. O BCP é capaz de já estar no número 20 mil e eu fui o 290. Depois do BCP, fui trabalhar para a área de mercado de capitais do BCP. Depois de sair do BCP, fui para Diretor Financeiro das tintas CIN. Depois fui para deputado na Assembleia da República. Estive lá 10 anos, desde fins de 1991 até janeiro de 2002. Portanto, cerca de 10 anos.

Depois ganhei a Câmara do Porto no fim de 2001. Em 2002, estive na Câmara do Porto durante 12 anos. De três eleições, ganhei as três. Depois, quando saí da Câmara do Porto, fui trabalhar para diversos sítios. Voltei ao BCP, na BCP Capital, que é uma capital de risco, não como funcionário, mas como membro de um Conselho de Investimentos e fui trabalhar para um grupo de empresas. Para duas de recursos humanos, das quais uma, a principal, para mim, é o que se chama um headhunter, portanto, é uma empresa que recruta os quadros de topo do país. Estive 4 anos nessa e estive numa outra. Estive ainda a presidente não-executivo de uma rede de clínicas dentárias, a smile.up.

Depois, fui candidato a presidente do PSD, em 2017, 2018, e estive lá até julho de 2022. E, entretanto, já passou um ano e pouco, e, nesse ano e pouco, eu sou consultor de um grupo empresarial português, de média dimensão, que tem diversos setores. Tem agricultura, turismo, construção civil, diversos setores, e sou presidente do Conselho Fiscal de uma empresa também e, aliás, fui também presidente do Conselho Fiscal da CIP e vogal do Conselho Fiscal da Caixa Geral de Depósitos. 


Regressando atrás no tempo, como foi a sua infância? 

A minha infância não foi fácil, foi complicada. Não por razões de ordem material, não porque os meus pais e a minha família não tivessem dinheiro. A família da minha mãe era uma família com algumas dificuldades financeiras, mas o meu pai era relativamente folgado. O meu avô era um comerciante de sucesso, de dinheiro. 

Foi complicada, primeiro, porque a educação que era dada na altura aos miúdos era muito rigorosa, não tem nada a ver com o que é hoje. Depois, eu, como fui para o Colégio Alemão, somava esse rigor em demasia. Do rigor sem ser em demasia eu sou adepto. O rigor em demasia existia nos anos 60. Entrei para o colégio em 1961 e, nessa altura, a educação era de um rigor extremo e no colégio também. Era aquilo que ainda hoje existe nos alemães. Ao ponto de alunos que tinham tido negativa num teste podiam ficar de pé no fundo da sala de aula. Uma brutalidade autêntica. 

E, depois, com um aspeto terrível que aconteceu. Quando eu era miúdo, tive um irmão que morreu, mais novo que eu, quando eu tinha sete, oito anos. Ele tinha cinco. Faleceu, o que marcou, naturalmente, a minha infância. 

Portanto, a infância em si não foi fácil, não porque havia muita gente pobre, eu ainda me lembro de ver, pouco, gente descalça na rua, aqui no Porto. Fora do Porto, vi bastante até. Na zona de Viana do Castelo, numa praia onde eu passava férias, as pessoas até tinham dificuldade em calçar os sapatos porque, como andavam sempre descalças, o pé ficava largo e depois o sapato era um problema quando, ao domingo, queriam pôr o sapato para ir à missa. Portanto, eu ainda me lembro um pouco disso. 

Lembro-me de, por exemplo, ter passado com uma negativa do atual 6.º ano para o 7.º ano, precisamente a Alemão. E então o meu pai disse-me “agora, nas férias, vais ter explicações a Alemão para recuperar”. Eu tinha as explicações com o meu pai sentado ao meu lado. Quem me dava as explicações era uma senhora alemã que vivia na Rua Tenente de Valadim. Um dia, o meu pai, a chegar a casa, eu estava a fazer o exercício para a explicação e ele disse-me “o que estás a fazer?” e eu disse-lhe que estava a traduzir um livro de português alemão. “E estás a fazer diretamente no caderno? Não fazes rascunho porquê? Não tens tempo? Então agora não sais mais de casa até ao fim das férias para teres tempo”. Por isto, eu fiquei agosto e setembro em casa. Com 12 anos de idade. E há mais episódios destes. O meu pai era assim, mas os outros pais, na média, talvez fossem um bocadinho menos maus, mas havia outros bem piores.


Falou da morte do seu irmão. Como é que uma criança de 7 anos lida com a perda de um irmão? 

É muito difícil de dizer. Eu não sei se isso tem a ver com o nosso subconsciente. Nós dominamos a parte racional, não dominamos o nosso subconsciente. Isso aconteceu em 1965, ele esteve doente entre 1964 e 1965, durante quase um ano. É uma coisa que se passou há quase 60 anos. Eu tenho muitas lembranças, mas são lembranças mais do quotidiano e menos da minha componente emocional, do que eu sentia na altura. 

Hoje, é muito difícil de responder a isso, embora possa parecer esquisito, uma coisa tão violenta, como é que não te lembras? Mas eu acho que há, aqui, há um pouco, talvez, do subconsciente a funcionar, que não me deixa vir tanto assim à superfície. Agora, obviamente, que, interiormente, aquilo foi uma brutalidade, mas ainda para mais, como éramos miúdos, eu ia fazer 8 anos, ele ia fazer 6, eu brincava com ele e com os meus primos. Eu não andava a brincar na rua, nem com os amigos do colégio.

Agora, não consigo ir buscar lá atrás o que é que eu com 8, 9, 10 anos sentia relativamente à falta dele. Não sou psicólogo, mas parece-me também que as coisas podem ser pesadas, mas, o tempo, naquelas idades, limpa com mais rapidez porque um miúdo rapidamente se distrai com outra coisa. E, como não tem para trás uma vida longa, não há muita coisa a atrapalhar. Penso eu.  O seu pai gostava que tivesse ido para a Alemanha. A educação rígida que viveu teve um papel importante para moldar a sua personalidade? 

Sim. Primeiro, esse extremo rigor, quer do meu pai, quer do colégio em si, foi uma razão forte para eu ir para a Alemanha. Muito forte mesmo. Porque era uma coisa que me separava da maneira de ser dos alemães. Os alemães, ainda hoje, mas hoje lido menos com eles, são muito frios, muito secos, quase, às vezes, brutos.

Por exemplo, eu andava na 5.ª classe e, no Natal, fizemos uma peça de teatro. Era preciso arranjar os vestimentos para os miúdos, fosse de anjinho, de Jesus Cristo, o que seja. E então houve uma senhora, a mãe da Luísa, que era uma colega nossa, que foi excecionalmente colaborante e fez uma série daqueles vestidos para os miúdos. A senhora foi impecável, muito amável. Nós estávamos num ensaio e a Luísa era a primeira encostada à cortina. A rapariga, com 10 anos, pôs a mão na cortina e a professora disse-lhe para tirar a mão da cortina. A miúda lá pôs a mão outra vez. Quando ela põe a mão outra vez na cortina, a professora interviu e disse: “tira a mão da cortina ou queres que a tua mãe venha aqui ainda cozer também as cortinas?” e disse isso arrogantemente. Aquilo chocou-me. Foi logo a primeira razão para eu não ir para a Alemanha. 

Agora, moldou-me em termos do meu rigor. Eu já o teria, na minha maneira de ser, mas o facto de, durante os anos mais marcantes da vida, eu ter convivido com um regime muito rigoroso, podia ter dado para o torto e pôr-me a mim um bandalho. Mas não, funcionou ao contrário. Ou seja, eu mantive o rigor, que tenho ainda hoje, não consigo de outra maneira. Mas penso que tenho um humanismo diferente daquilo que eu tive de suportar. Pelo seu pai exigir tanto de si, fazia com que sentisse necessidade de o impressionar? Não. O que diziam na altura é que o fenómeno que se passou com o meu pai, para lá do feitio dele, de raiz, é que, ao ter dois filhos e ter perdido um, projetou tudo no outro. Ou seja, normalmente, tem-se dois, perde-se um, o outro fica super protegido. E ele funcionou ao contrário. Era de um rigor extremo e queria que eu fizesse tudo nos termos como ele queria. E o que ele queria era que eu fosse o melhor possível. Na altura, eu era muito miúdo, com 14, 15, 16 anos, não conseguia fazer essa análise assim, mas lembro-me de darem essa explicação, e provavelmente era isso. 

Depois também havia outras características dele que apagam essas. Características muito positivas, como é evidente. Mas o meu tio, que era casado com a irmã do meu pai, também era assim, eventualmente ainda pior.  E como era a relação com a sua mãe? 

Isso é completamente diferente. A minha mãe era, não digo completamente o oposto, mas em larga medida. Ela fazia o contraponto. Se o meu pai me dava um castigo de cinco dias, a minha mãe tentava ver se era só um dia. A minha mãe e a minha avó, a mãe dela, a minha avó, uma avó muito presente. E, naturalmente, aí, elas as duas sofriam quando viam um miúdo pequenino assim. Miúdo e miúdos. Eu também me lembro do meu irmão ter tido alguns castigos. 

Eu penso que era a situação dominante nas famílias portuguesas, na altura. O pai mais rigoroso e a mãe mais benevolente. E, depois, o homem prevalecia fortemente sobre a mulher pela cultura da sociedade e pelas próprias leis.  E como é como pai?

Eu, como pai, sou muito diferente. Não tenho o poder que o meu pai tinha sobre mim. Para o bem e para o mal. Eu diria que, até certo ponto, para o bem, e, a partir de certo ponto, para o mal. Mas, a partir de uma dada altura, um bocadinho de autoridade, para nos ouvirem com mais atenção, senão não ligam nenhuma, ajuda. Eu tenho mais 44 anos que a minha filha. Fui pai muito tarde e às vezes digo-lhe: “Eu tenho mais de 40 anos que tu. Tu achas que, daqui por 40 anos, sabes o mesmo que sabes hoje?” Isto não quer dizer que o mais velho tenha sempre razão, mas há uma experiência. Não há nada como nós aprendermos à nossa custa, mas se pudermos aprender um bocadinho à custa dos outros, não é pior. Procuro acompanhar, na medida possível e incentivar o estudo. Ela estuda muito menos do que eu estudava. Para o bem ou para o mal. Ou seja, talvez eu tivesse estudado de mais, no sentido de que me obrigavam a aprender. Mas ela também é de menos. Há alturas de exames onde estuda mais, mas isso confina-se ali a dois meses por ano. Não há um acompanhamento permanente e o acompanhamento permanente é fundamental. 

Não sei dizer muito sobre a relação com a minha filha. Hoje em dia, nós nunca conseguimos parar o vento com as mãos. Portanto, o vento vem numa dada direção. Há coisas que nós podemos dar um jeito e tentar corrigir. Muito através dos exemplos, e também com cuidado. Porque, às vezes, os pais fazem de uma dada maneira e o filho, só para chatear, faz ao contrário. Portanto, até nisso, é preciso ter algum cuidado.  Nasceu e cresceu na cidade do Porto. Qual é a sua ligação com a cidade? 

É muito grande, desde sempre. É maior do que o normal. Porque vivo aqui no Porto. Se eu tivesse nascido e vivido em Viana, que é a minha segunda cidade, na prática, seria igual. Eu penso que tenho uma característica de me ligar um pouco mais que o normal à minha terra. 

Notou-se isso ao não ir para a Alemanha, a questão do rigor foi fundamental. O 25 de Abril também. Porque eu teria ido para a Alemanha a seguir ao 25 de Abril. Aliás, fui. Mas estive lá só três semanas, num seminário que tinha de frequentar. Se não tivesse havido o 25 de Abril, a probabilidade de eu ir era um bocadinho maior, mas também porque me custa muito sair do Porto. 

Tive propostas para ir para Lisboa. Não fui. Não queria sair do Porto por nada. Depois, quando fui para deputado, tive de ir. Aí não tive outro remédio. Mas vinha ao Porto ao fim de semana. E, mesmo agora, quando era presidente do PSD, das muitas críticas que me faziam, apesar de que me faziam críticas a tudo e mais alguma coisa, é que eu não estava em Lisboa e sim no Porto. E é verdade. Eu tinha aqui um escritório no Porto e, se pudesse trabalhar a partir do Porto, trabalhava a partir do Porto. Estava todas as semanas em Lisboa também, mas não estava os sete dias da semana. E, portanto, eu tenho uma ligação muito grande. Repito, acho que não é pelo Porto, mas sim pela minha terra, que é uma coisa diferente. Se fosse outra, eu teria a mesma ligação. O que me atrai no Porto não é especificamente como as pessoas são, como são as casas, como são as ruas, ou como são as escolas. Como surgiu o gosto pela economia?

É por exclusão de partes. Primeiro, a disciplina que eu mais gostava sempre foi a matemática. Portanto, nunca foram as letras. Embora eu estivesse num colégio mais forte em letras do que nas ciências, eu gostava mais das ciências do que das letras. A química, a matemática.  Eu achava que a minha vocação, pela minha maneira de ser, era a matemática. Era ser advogado, ser jurista. O meu avô, na altura, pagou ao meu primo e pagaria a mim, uns testes psicotécnicos que só se faziam em Lisboa, para ver a vocação da pessoa e eu não aceitei. E não aceitei porque, se fosse, eu achava que ia dar Direito. E eu para ir para Direito tinha dois problemas. Um: Tinha de sair do Porto, não havia Direito no Porto, só tinha em Coimbra e não tinha matemática, outro problema grave.

Entretanto, na matemática, eu tive um professor, era engenheiro civil, e como eu fazia, às vezes, uns exercícios de engenharia civil, eu achava aquilo fascinante. Mas, engenharia civil, depois, também era só matemática e só engenharia. E eu também não queria ter só isso. Então, somei uma conta dividida por dois e fui para o meio, que é a economia. Que tem as duas coisas, tem uma parte de letras e uma parte de ciências. E tem uma parte também de organização, de ser uma pessoa com rigor e organizada, que se relaciona com a minha maneira de ser. Enquanto era estudante, foi Presidente da Associação de Estudantes da FEP e membro do Conselho Pedagógico. Sempre teve aptidão para a liderança?

Sim, isso eu acho que sim. Quando eu era mais pequenino, até o meu irmão morrer, não, mas, depois, uma das coisas que se fazia muito era andar a brincar na rua, jogava-se à bola na rua, andava-se de bicicleta na rua... Nessa altura, quando andámos todos a brincar na rua, eu formei um clube de futebol, de hóquei em patins e em campo, com os miúdos de 11, 12, 13 anos, e o impulsionador fui eu. Hoje, olhando para trás, se era eu que empurrava, há aqui qualquer coisa já ligada à liderança.

Depois, quando chego à Faculdade, ainda no Colégio Alemão, e antes de 25 de Abril, eu começo a ter as primeiras atitudes políticas com 15, 16 anos. Na Faculdade, fui o Presidente da Associação de Estudantes, fui o primeiro da Faculdade de Economia, porque, antes de mim, as Associações tinham sido todas de esquerda e não tinham Presidente. Era um coletivo que geria aquilo. Também ficou isso aí marcado. E depois, quer na militância, quer na juventude social-democrata, quer depois no partido, acho que se nota que eu tinha, e que hoje tenho esse perfil, mas diferente.

Enquanto que, esse perfil, aos 20 anos, 30 anos, 40 anos, aparecia por uma força interior, uma maneira de ser, uma vontade e uma ambição genuína, hoje isso é muito menor. Com a idade isso torna-se muito menor, embora exista, e é complementado com a experiência. Portanto, eu hoje, se vou liderar qualquer coisa, uso essa força, mas uso mais a experiência de quem já liderou muita coisa e sabe como se faz e não o impulso interior. Vai-se perdendo a genica, a força, mas vai-se ganhando a experiência e isso faz um equilíbrio. Por isso é que há lugares onde é mais aconselhável a alguém com 40 anos, e lugares onde é mais aconselhável a alguém com 60 anos. E, então, quais são, para si, as características que um bom líder deve ter?

Primeiro, é preciso dar o exemplo, isso é fundamental. Estou a falar de características de um líder a sério e com qualidade. Eu posso ser líder porque o meu pai é o dono da empresa e sou eu que mando. Isso não é nada. É preciso, para já, dar o exemplo. Eu não posso estar a dizer para se fazer de uma dada maneira e eu fazer de outra. 

Eu entrava na Câmara do Porto às oito e meia da manhã e só saía às nove da noite. Eu não fazia aquilo para dar o exemplo. Fazia porque estava empenhado e tinha que fazer e estava lá. Mas, ao mesmo tempo, estava a dar o exemplo. Não era para exigir o mesmo aos outros, mas para aquilo que eu exigisse aos outros ter autoridade [para o fazer]. 

Depois é preciso ter sempre a capacidade de olhar para o outro, para o subordinado, quando nós lideramos, e perceber a circunstância em que ele está e até onde é que ele pode ir. Por um lado, para não lhe pedir mais do que aquilo que é sensato, mas, por outro lado, também para não permitir o abandalhamento da situação.

Depois é preciso ter, no mau sentido, truques para levar as coisas. Não é bem truques, é uma estratégia. Eu tinha. Na Câmara tínhamos muitas empresas, municipais, fundações, etc. Eu, por exemplo, fazia, todos os trimestres, uma reunião com as administrações todas juntas. Cada administração tinha três pessoas e, portanto, fazia uma reunião de 15 pessoas. Naquelas reuniões cada um dizia o que tinha conseguido e os objetivos. Eu estava a liderar a reunião, e, naquela altura, não era só a reunião, eu estava a liderar toda uma forma de gestão de um grupo grande, e quase não falava. Eles falavam e eu só fazia uns reparos porque, no trimestre seguinte, todos eles queriam ter o brilho de chegar ali e, perante os outros das outras empresas, trazer as coisas bem feitas e saber responder aos outros.  Eu liderava quase sem falar, mas, por exemplo, isso foi uma inovação que eu fiz lá, que foi fundamental para os indicadores das diversas empresas melhorarem, das pessoas se empenharem, porque, por um lado, tinham os outros a perguntar, mas eles também podiam perguntar sobre os outros, e tudo aquilo se tornava um grupo. Portanto, depois, há diversas formas, consoante as circunstâncias, de nós conseguirmos liderar, desde que também se tenha poder para liderar porque muitas vezes pede-se ao líder que faça aquilo que ele não consegue porque não tem poder. Na política nacional, isso é muito frequente.  Foi atleta federado de atletismo no Centro Desportivo Universitário do Porto (CDUP), participou em corridas de carros e teve até uma banda durante a juventude. Como é que foram essas experiências?

Tive uma banda, sim, mas só no colégio, uma coisa pequena. Nas corridas de carros, fui campeão quatro vezes. Era uma coisa que  existia nos anos 60, antes do 25 de Abril. Havia alguns clubes aqui no Porto, havia em Lisboa, e depois faziam-se campeonatos. Funcionavam como os campeonatos da Fórmula 1. Ganhei quatro, depois fiquei em segundo num, depois fiquei em terceiro e depois desisti. Ganhei isso quando era jovem, 10 anos, 11, 12, 13, 14, por aí. Isso era importante porque, para um miúdo conseguir ganhar esses campeonatos, era uma forma de afirmação. Embora, se agora recuarmos lá atrás, na festa de entrega das taças, nos quatro campeonatos que ganhei, não recebi nenhuma. Em todos eles, o meu pai castigou-me. É brutalidade. Não estou a falar de uma pessoa com 20 anos, mas sim de uma criança. Eu, na altura, não percebia, mas foi importante para a afirmação pessoal. E eu tinha muito jeito... Deve ter sido a coisa que eu tinha mais jeito na minha vida porque eu quase não treinava e ganhava tudo [risos].

No atletismo, era velocista. Fazia 100 metros, 200 metros, cheguei a fazer 400, salto em comprimento, apesar de não ter corpo para isso porque era muito magrinho. Tinha muita velocidade, mas não tinha força. Foi importante em termos de saúde e é até aos dias de hoje porque, ainda hoje, ou ao sábado de manhã, ou ao domingo de manhã, eu faço uma corrida, ao fim destes anos todos.

Depois era também relevante porque eu tinha os amigos da minha rua, os amigos do colégio alemão, os amigos da corrida de carro, os amigos do atletismo, os amigos das férias em de Viana… Ainda ontem tive um jantar com três amigos que andaram comigo no atletismo há muitos anos. Portanto, é das coisas, que eu claramente repetia, não tenho dúvidas nenhumas. Se andasse na faculdade outra vez, repetia, e, se iniciasse a vida profissional nesse enquadramento, procuraria disciplinar-me, para conseguir. Coisa que eu nunca fiz. 


A política sempre esteve presente na sua vida?

A política esteve quase sempre presente, se eliminarmos os primeiros anos de idade, onde ninguém é político [risos]. Mas, mais ou menos a partir dos 15 anos, comecei. É evidente que ela tinha de estar dentro de mim, na minha maneira de ser, não há outra forma, porque, naquela altura, era um bocadinho diferente. Hoje, alguém que tenha 20, 30 anos, e que já tenha alguma consciência do que isto é, e se mete na política, tem mesmo de ter, lá dentro de si, um impulso muito forte. O que hoje é a política é da gente fugir o mais depressa possível e não se meter nisto minimamente. Coisa absolutamente horrível. Na altura não era tanto assim, mas, mesmo na altura, tinha de ter ali um impulso. 

O principal impulso que eu tive para entrar na política, no tempo do Estado Novo, foi a hipocrisia que existia na política. Na política há sempre um bocado de hipocrisia, mas, quando os regimes se aproximam do seu fim, ou quando já estão esgotados, o discurso torna-se muito mais hipócrita. Aquilo que era o discurso oficial, seja dos políticos, seja das Instituições do regime, das instituições públicas, da igreja, do governo, tudo aquilo era um discurso absolutamente hipócrita. As pessoas diziam uma coisa que não tinha nada a ver com a realidade. Que é, aliás, o que hoje se nota já também. O que é um sinal claro de esgotamento do regime e de incapacidade para resolver as coisas.

Na altura, começou a irritar-me e foi contra isso que eu fui e que me mobilizou para a política antes do 25 de abril. No 25 de abril, o que me mobiliza é a mesma coisa, ao contrário. Já não há hipocrisia, vamos construir uma Democracia, com Liberdade, como era a Alemanha. No Colégio Alemão ensinavam-me aquilo que não se ensinava nas escolas portuguesas, o que era a democracia, o fascismo, o comunismo,... Eu sabia isso porque se dava nas aulas de História, enquanto que os meus amigos portugueses não sabiam porque ninguém falava nisso. Portanto, isso também me ajudou a entrar mais cedo.  No primeiro mandato na Câmara Municipal de Porto, por causa da surpresa e pela inexperiência, ainda não sabia se era capaz de conduzir a Câmara. Quando assumiu o cargo, teve dúvidas da sua capacidade?

Não. Não tive dúvidas da minha capacidade, embora eu tivesse 44 anos. Essa ausência de dúvidas também estava ligada à minha inexperiência. Como eu era mais inexperiente, muito mais do que sou hoje, apesar de só se terem passado 20 anos, há aqui um crescimento de experiência muito grande. Nós começamos por entrar mais de cabeça, sem medir tanto as consequências. Fazemos aquilo que tem de ser feito, o que nós achamos que deve ser feito. Se eu, na altura, fosse mais experiente, teria tido algumas dúvidas sobre a minha capacidade para algumas coisas, mas, como não tinha tanta experiência, achava que ia conseguir ir mais longe do que talvez pudesse. Por acaso fui e acho que tive essa capacidade e não tive as dúvidas, mas devia ter tido. Não é um elogio isso. Havia uma certa inconsciência ainda na altura.


Imagem: Diário de Notícias

Foi líder da Câmara Municipal do Porto durante 12 anos e, até hoje, é a pessoa que ocupou o cargo durante mais tempo na história da cidade. Como é que descreve este período em que trabalhou naquela e para aquela que é a sua cidade?

Pese embora as enormes dificuldades que eu tive, que têm a ver, por um lado, com as minhas características, tenho uma tendência grande e acho que ainda bem para afrontar e para pôr em causa os interesses instalados, que é uma coisa dificílima na política. Se me perguntarem qual é a maior característica que me distingue na política, eu acho que é essa. A marca de chegar e, se está mal, tem de estar bem, custe o que custar.

Quando eu chego à Câmara, tinha havido precisamente 12 anos seguidos de gestão do Partido Socialista, com dois presidentes. Estava instalado na Câmara, nas empresas municipais, nas águas e em todo o Partido Socialista. Os funcionários ou eram do PS ou então tinham aderido ao PS. Portanto, quando entra alguém com características para renovar, reformar, gera uma reação brutal. Essa minha característica ajudou a que a reação ainda fosse maior do que aquela que já seria pelo desconforto de ter saído um e entrar outro. 

Depois, a mesma coisa relativamente à cidade porque ela própria estava enquistada. Havia um conjunto de empreiteiros que ganhavam as obras todas, havia os tipos da denominada cultura que levavam subsídios para tudo e mais alguma coisa. Havia o poder do futebol, havia os jornalistas também e, portanto, eu, a dada altura, comecei a relacionar-me com isso tudo de uma forma autónoma, ou mesmo independente. Isso gerou na cidade reações grandes. Tive, contra mim, os jornais, o presidente do Futebol Clube do Porto, os agentes culturais, do Teatro Campo Alegre, que estavam habituados a ter subsídio e mais subsídio e, em troca, vinham até ao jornal dizer bem. Comigo não era assim.  O equilíbrio e rigor das contas da autarquia e a aposta na requalificação dos bairros do Porto foram algumas das grandes bandeiras enquanto esteve à frente do Município. Enquanto político, define-se como uma pessoa rigorosa?

Claramente. As contas em ordem é algo que pertence à minha forma de ser, uma grande parte deve-se ao curso que eu tirei, mas a maior parte à minha forma de ser, porque há muitos que tiraram o mesmo curso que eu e eram uns bandalhos a gerir as contas. 

Por todos os sítios onde eu passei, só com a exceção das tintas CIN, encontrei as finanças em muito mau estado. Encontrei na Câmara, encontrei no Partido, encontrei em J. Batista. A Câmara do Porto tinha um endividamento brutal, tinha despesas quer variáveis, quer fixas, que era preciso por em ordem e foi posto em ordem.Com moderação, demorou 12 anos, começaram a estar mais ou menos para o fim de 10 anos porque senão matavam-me durante a cura.  Portanto, é preciso cuidado. Mas, efetivamente, fez-se isso, e, atualmente, por aquilo que me é dado a observar, continua equilibrado. Portanto, com um passivo baixo. Eu apanhei aquilo com um passivo brutal, e não é só passivo, é passivo bancário, é passivo aos fornecedores, são os contratos assinados que depois se refletem em custos mais à frente, compromissos que se tenham, aquilo era uma coisa terrível. E, pronto, foi posto na ordem. Eu não sei conviver com as coisas desequilibradas.  Esse rigor já foi confundido com frieza e arrogância?

É muitas vezes confundido. Por exemplo, eu, na altura, investi 200 e muitos milhões de euros em bairros sociais. A reabilitação das escolas do Porto, que eram 50 escolas, onde poderei ter gasto mais uns 30 milhões. É uma coisa eminentemente social. Quando eu cortava os subsídios à denominada cultura, eu dava subsídios, mas em circunstâncias muito rigorosas, e cortei muitas outras coisas desse género, festas e festarolas, esse dinheiro era para aplicar ou na redução do passivo ou na reabilitação dos bairros sociais. 

É impossível essas pessoas agradecerem-me, mas imagine-se o que é que não fizemos, na altura, por um miúdo que tinha 6, 7, 8 anos de idade que ia para a escola onde os vidros estavam partidos, onde as paredes estavam grafitadas.  O ambiente era esse. Regressava a casa, ia para o seu bairro, onde era um ambiente de droga, de paredes grafitadas, o chão furado, com caruncho, as portas furadas também com caruncho. Imagine-se o que é esse miúdo que, com 5 anos, ia viver isso e eu arranjei-lhe a escola e a casa e ele nunca passou por isso. Ele hoje tem 20 e tal anos e não me pode agradecer porque não sabe o que foi feito por ele. No entanto, em largas dezenas, para não dizer centenas de miúdos, eu terei, com isto, potenciado um futuro muito diferente para essa pessoa. Outros não terei conseguido, como é lógico, mas aquilo era a minha obrigação, era o que estava ao meu alcance, não os podia trazer para a minha casa e tratar deles.

É uma obra, e, quem está na política, tem de ter isto na cabeça. A malta vê a rua asfaltada, bate palmas, gosta muito e vota nele. Isto não se vê, porque demora muitos anos a ver-se. Agora, é algo que, se não há o rigor financeiro, que se impõe e que leva muitos a dizer que há uma certa frieza, não é possível. Isso que dizem de frieza, eu acho que é, não quero ser arrogante, mas por alguma insuficiência intelectual. As coisas têm de ser vistas com mais abrangência. Quais são os maiores desafios na vida pessoal para quem trabalha no mundo da política?

Na vida pessoal, primeiro, tem muito menos tempo livre para si e para a família. Tem, depois, depende dos níveis em que se está na política, mas num nível mais elevado, tem um outro custo a pagar que é a notoriedade pública. Nós podemos achar muita piada sermos conhecidos na rua, conhecerem-nos e aparecermos na televisão durante um ano ou dois, mas depois não tem graça nenhuma. Portanto, a pessoa que nunca passou por isso, olha e pode achar graça, mas acha graça durante algum tempo. 

Eu tive um jantar e, os meus amigos, quando saímos, disseram-me que as mesas todas olhavam e estavam atentos ao que estava a ser dito. Eu compreendo. Se o Ronaldo se sentar ali na mesa do lado eu também olho. Eu compreendo, mas é um custo que temos. 

Para levar ao extremo, o Bill Clinton já não é Presidente dos Estados Unidos há vinte anos e não pode andar na rua em lado nenhum, nem no Porto, nem nos Estados Unidos. Eu não fui Presidente dos Estados Unidos, mas, no limite, lembrei-me que o Bill Clinton mandou lá a mesma coisa, mas o Bill Clinton já foi há mais tempo. Isto, efetivamente, é um custo que temos de estar disponíveis a pagar, embora que, quando entramos, aquilo vai andando e a gente não se apercebe e, a dada altura, já está nela e não há nada a fazer. E há uma coisa que tem de se ter, que hoje não se tem que é, efetivamente, um interesse grande pela exposição pública. É preciso ter esse gosto. 

Se pegar no Doutor Álvaro Cunhal, Mário Soares, Francisco Sá Carneiro eram pessoas que tinham um gosto enorme pela exposição pública. Não vou dizer que os de topo também não tenham hoje, mas depois, no geral, muitos vão para ministros não é porque tenham o gosto pela exposição pública. Vai para ministro porque é vaidoso, porque, a seguir, saindo de ministro, talvez tenha mais saída. Isso é muito importante e tem-se perdido. Alguma vez foi mal abordado na rua por alguém em algum espaço público? 

Muito pouco. Tenho de fazer esforço para me lembrar de uma situação assim. Posso lembrar-me de situações assim em campanha eleitoral. Daí sim. Porque em campanha eleitoral, às vezes, na rua, a falar com este e com aquele, levamos respostas que não gostamos. E aí diversas vezes, no Porto. Nas campanhas nacionais que fiz, eu já fiz muitas campanhas eleitorais, e fiz particularmente cinco, sendo o centro das atenções, três no Porto e duas nacionais. Depois fiz europeias, legislativas em que não era eu o líder, europeias em que não era eu o cabeça de lista, muita coisa. Podem dizer-me, a dada altura, “vocês são todos iguais”. Aqui no Porto, sim. Agora, ir na rua e dirigirem-se a mim de uma forma agressiva, só me lembro de situações ligadas ao futebol, em 2003, 2004, 2005. Aí sim. Mas não se dirigiam a mim diretamente. Eu ia no passeio e eles no outro passeio e davam dois gritos, pareciam que estavam na selva. Ou, então, passavam de carro e punham a cabeça de fora, aos gritos, a insultar. Mas não vieram ter comigo a dizer “você fez isto e aquilo”. Isso não. 


Imagem: Filipa Ferreira/O Essencial

Entre 1982 e 1984, foi vice-presidente da Juventude Social Democrata (JSD). Foi eleito deputado à Assembleia da República pelo PSD em 1991, foi também Secretário-Geral do partido, Vice-Presidente e eleito Presidente em 2018 do Partido Social Democrata. Com tudo isto, o que é que o PSD significa para si?

A minha relação com o PSD começou antes do PSD nascer, digamos assim. Porque eu, a seguir ao 25 de Abril, não aderi propriamente ao PPD. A seguir ao 25 de Abril fui para onde o Dr. Sá Carneiro foi. O Dr. Sá Carneiro fundou um partido, que era o PPD, eu fui para o PPD. E disse uma vez isto, quase que me matavam no partido: “Se o Dr. Sá Carneiro tivesse ido para o Partido Socialista, eu ia para o Partido Socialista”. Foi logo um 31. A estupidez é uma coisa abundante. Mas a verdade é essa. Eu era um fã do Dr. Francisco Sá Carneiro, era em quem eu me revia. Quando se dá o 25 de Abril, eu vou atrás dele, como é lógico. Como provavelmente hoje há gente que vem atrás de mim, numa coisa ou noutra que eu possa fazer, eu ia atrás do Dr. Sá Carneiro. Depois das eleições legislativas de 2022, que deram a vitória ao Partido Socialista (PS), escolheu cessar funções no Partido. Foi uma decisão óbvia ou difícil de tomar? 

Foi uma decisão óbvia. Se os partidos e, neste caso, o PSD, funcionassem com alguma racionalidade maior que aquela que têm, eu tinha acabado de ser eleito. Foi um disparate o que o PSD fez, uma coisa absolutamente disparatada, que é fazer um congresso a 14 de dezembro e eleições a 30 de janeiro. Isto não existe. Aliás, a lista de deputados foi aprovada, escolhida e aprovada a 7 de dezembro. Ou seja, a lista de deputados foi proposta e feita pela Comissão Política Nacional, que já tinha perdido. Portanto, eu fui eleito líder em novembro e, a 14 de dezembro, era o congresso. Eu fui eleito líder aqui, mas só tomo posse no congresso. E a Direção Nacional que está comigo, que vai sair, vai ser substituída por uma aqui. Portanto, o líder aqui já não está. Houve um momento assim. O Montenegro foi eleito, mas ainda não tomou posse. Portanto, o presidente sou eu e a equipa sou eu. Mas ele já é. Está ali aquele período que não serve para nada. E, portanto, levou a que eu, nas eleições, tivesse um mês e meio de mandato. Ora, mandaria o bom senso que a pessoa ficasse, principalmente porque as eleições nem sequer seriam quatro anos depois. Quem vier depois tem um tempo longo demais. Cinco anos é longo demais. O cargo do líder de oposição é muito pesado. Dessa perspectiva, até fazia algum sentido, desde que eu dissesse, como disse, que candidato a primeiro-ministro não sou nunca mais. Podia era prestar o serviço de gerir o partido, dirigir o partido, fazer a oposição poupando quem me pudesse suceder. Isso fazia algum sentido se houvesse racionalidade, mas não há. Considerando que já fui duas vezes candidato a primeiro-ministro e, desta vez, os outros tiveram maioria absoluta. Não sou mais. Chega. Já tenho recorde nacional de líder da oposição. Nunca ninguém teve tanto tempo. Foi isso que, aliás, eu disse numa conferência de imprensa. Eu tenho recorde nacional de líder de oposição com quatro anos e tal. E, mesmo assim, duas vezes candidato a primeiro-ministro não era muita gente. Bem, se eu agora ficar aqui mais quatro anos e tal, era quase recorde mundial. Isso não faz sentido. Por isso, vou-me embora. Era óbvio. Muita gente diz agora que “se você estivesse, agora é que ganhava”. Pois, está bem, se a minha avó tivesse rodas era um camião. Ou seja, as coisas são como são. Há pessoas que dizem isso até em tom crítico, dizendo que devia ter ficado. As pessoas esquecem-se o que é que teria acontecido se eu tivesse ficado. Se eu já tinha sido permanentemente atacado, então, numa situação daquelas era absolutamente insuportável. É uma decisão mais do que óbvia ter de sair daquelas circunstâncias... Com a calma com que saí. Estava pronto para perder?

Não estava pronto para o PS ter maioria absoluta. Eu achava, pelo que eu via, pelo contacto na rua e pela experiência, que o resultado ia ser mais um ou dois para o PS ou mais um ou dois para nós. Ou seja, quem ganhasse, ia ganhar com uma margem escassa, com 2%. Era isto que eu achava que ia acontecer. Podia ser para nós ou não. O PS consegue a maioria absoluta com menos votos da história da democracia portuguesa. Conseguem com 41 e tal. Nunca ninguém com 41 consegue a maioria absoluta. Teve muita sorte pelo método. Por exemplo, em Bragança, nós perdemos um deputado por 14 votos, em Portalegre por 100 e tal. Portanto, eles têm muita sorte porque vão buscar os últimos dos diversos distritos. E assim consegue uma coisa que antes nunca se tinha conseguido. Mas, mesmo que não tivessem conseguido os 41% era uma diferença grande. Nós tivemos 29, há uma diferença de 12. Nunca contava com uma diferença de 12, até porque a diferença aumentou relativamente a 19. Pese embora o PSD tenha subido, nós subimos, tivemos mais porcentagem, mais votos, mas menos deputados. Tínhamos tido 27 e, agora, tivemos 29, exatamente certos. Há aí até um livro do Paixão Martins sobre sondagens que diz que tivemos 27. Não é 27. Tivemos 27 no continente, mas depois também tivemos votação na Madeira e nos Açores através da coligação. Então, nós tivemos 29 e temos 5 deputados pela Madeira e pelos Açores, conta para alguma coisa. Há partidos que não têm nem 5 deputados. Foi demais. Mas foram umas circunstâncias muito especiais.  O António Costa disse isto e é verdade. As eleições foram num domingo. Se fossem na segunda, as pessoas já tinham votado diferente, principalmente se soubessem o resultado. 

Eu, nessas eleições, fui vítima de uma coisa que também já usufruí. Aqui, há uma concentração de votos no Partido Socialista, pela esquerda, pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, principalmente, porque ficam muito pequeninos, para evitar a vitória do PSD. Há ali um voto útil, que depois deu mais do que, quem votou, queria. Quem votou queria que o PS ganhasse, mas não queria que tivesse maioria absoluta. Já usufruí disso quando ganhei a primeira vez a Câmara do Porto. Eu também estou convencido que a maioria dos votos votaram em mim, mas, muitos deles, votaram em mim para que o Fernando Gomes não tivesse maioria absoluta, porque, segundo eles, ele tinha traído o Porto. Não votaram exatamente em mim para eu ganhar, e foram tantos a fazer isso que eu ganhei. Penso que foi assim. É o contrário de 2022. Está convencido que foi isso que aconteceu agora?

Sim, sim. Acho que sim. Acho que há uma percentagem significativa de votos no PS que, se soubessem o resultado que foi, não teriam votado porque a ideia não era dar uma maioria absoluta ao PS, a ideia era evitar que o PSD ganhasse. E, em alguns casos, aqueles que queriam evitar que o PSD ganhasse, ao mesmo tempo não confiavam na questão do Chega. Ou seja, apesar de eu ter dito que não levava o Chega, as pessoas olharam para mim como um político normal e disseram “ele disse uma coisa, mas faz outra”. Enganam-se. A partir do momento que eu disse que não, é não. Disse, cumpro. Mas, como na política não é muito assim, as pessoas olharam e pensaram para elas: “é igual aos outros”.


Deixar a liderança do partido foi o encerrar de um capítulo na sua vida? 

Foi, isso foi. Foi porque é um cargo, eu diria, estupidamente exigente. Digo estupidamente de propósito. Um cargo exigente, mas ele é estupidamente exigente. Ou seja, não precisava de ser tão exigente. O líder de oposição, na política portuguesa, sofre um desgaste muito grande porque pedem ao líder da oposição, muitas vezes, aquilo que ele não tem condições para dar. Enquanto que antigamente, por exemplo, se o PS faz asneiras, o PSD sobe. Não sei se foi pela primeira vez, mas comigo foi assim. Quando acontecia qualquer coisa de mal ao governo e ao PS, em vez de se projetar e de se dizer que está ali o PSD como alternativa, não. O PSD levava pancada também porque aquilo corria mal e o PSD não fazia nada. 

Imaginemos, o Serviço Nacional de Saúde está mal e o PSD não faz nada. O PSD, na oposição, a única coisa que pode dizer é que está mal e que gostaria que estivesse diferente. Isso não altera o Serviço Nacional de Saúde. O que é que o líder da oposição pode fazer? Não pode fazer nada. No entanto, é este o raciocínio que as pessoas fazem e depois saltam para o extremo. Isto não tem solução e torna a liderança da oposição estupidamente exigente. Porque tem de se inventar sabe-se lá o quê para tentar contrariar esse pensamento absolutamente irracional. Por isso é que eu digo estupidamente exigente. Porque exigente sim, tem de ser exigente. Estamos a falar de alguém que está a dizer que quer ser primeiro-ministro, um desgaste que é muito difícil de exigir.  E, hoje, como é a sua relação com o partido? 

A relação direta com o partido não é nenhuma. Sou militante. Não é nenhuma no sentido de não participar nas reuniões. Encerro um capítulo porque eu tenho uma carreira longa de partido. Fui praticamente tudo. Fui vogal da Direção Nacional, fui secretário-geral da Direção Nacional, fui vice-presidente da Direção Nacional, fui presidente da Direção Nacional, fui membro do Conselho Nacional, fui congressista muitas vezes, fui deputado pelo partido, fui presidente da Câmara pelo partido. 

Não deixo de ser militante do PSD, como é lógico. Por mais que eu até possa querer fugir, acabo sempre por não fugir das notícias e de uma avaliação interior que faço. Agora, não a faço em público porque não quero fazer aos outros o que fizeram a mim. A mim criticavam-me sempre, mas eu não quero fazer isso. Portanto, em termos públicos, retraio-me. Não quer dizer que eu não diga uma coisa ou outra, mas não sou do PSD. No mundo da política, ainda ficam objetivos ou sonhos por cumprir ou já está tudo feito?

Não. Não fica nenhum sonho por cumprir. Não está nada feito. Ou seja, há muito para fazer. Há muito mais para fazer hoje do que havia há um ano, e há um ano muito mais do que havia há dez. Precisamente pelo desgaste que o regime tem e pelos sinais de pré-falência que o regime apresenta. Portanto, há muito para fazer, cada vez mais, e cada vez mais pesado.  Recordando todo o seu percurso, que momentos o marcaram mais durante a vida política?

A segunda vitória na Câmara do Porto. A primeira vitória da Câmara do Porto é aquela que fica na história, por ninguém esperar que eu fosse ganhar. No entanto, a segunda tem mais valor porque, durante o meu primeiro mandato, eu fiz muitas roturas, fiz muita coisa com custos políticos elevados, mas que tinham de ser feitos para o bem comum.  Aquela guerra que me moveram, não fui eu que me movi, mas que me moveram no futebol. E, apesar disso, eu vou à eleição, consigo ganhar e com maioria absoluta. Portanto, a eleição de 2005 é, para mim, a eleição com mais valor que eu tive. Já a de 2009, onde eu volto a subir a votação, já é mais fácil. 2005 é mesmo uma eleição difícil porque já estava em avaliação. Estava em avaliação há 4 anos e 4 anos ainda era pouco para se perceber bem o que eu estava a fazer. Se eu tivesse sido candidato em 2013, se a lei permitisse e se eu quisesse, penso que ainda teria tido um bom resultado. 

Marca-me mais as coisas da Câmara do que no PSD, na Realização Nacional do PSD. A margem de manobra, hoje em dia, para se fazer alguma coisa pela sociedade, pelas pessoas, pelo país, é cada vez mais reduzida. Muitos boicotes, muitos interesses instalados, muita mentira. Se as pessoas não conseguem descodificar bem aquilo que são as notícias, e, fundamentalmente, aquilo que são os comentários, e uma parte significativa das pessoas não consegue descodificar, porque não têm sequer ainda conhecimentos, o político fica com uma imagem que não tem nada a ver com aquilo que ele é. Eu via coisas na televisão sobre mim, que mentiam todos os dias, e eu olhava e dizia assim: “Quem vê isto e não conhece a verdade, deve achar que eu sou maluco”, porque um tipo que dissesse aquilo que diziam que eu dizia e fazia é um tipo que não bate bem da cabeça. Aí também está muito da impopularidade e da baixa qualidade dos agentes políticos, porque os agentes políticos e os políticos foram sendo desgastados através destas coisas ao longo de muitos anos. As pessoas com mais qualidade, mais bem intencionadas não estão para isto. Por isso, entram os que têm menos qualidade e que se preocupam menos que distorçam o que eles dizem e, noutros casos, nem precisam distorcer o que eles dizem, já lá está. Nem é preciso distorcer. 

Por exemplo, imagino um artigo de opinião em que diz que eu fui à China e na China fiz isto e aquilo e que isso não se faz, que devia ter feito desta maneira. E, a seguir, outro artigo de opinião. E está toda a gente a discutir que eu na China fiz não sei o quê e, na origem, eu nem à China fui. É preciso ter uma robustez muito grande para aturar isso tudo. Uns têm mais, outros têm menos. Eu tenho bastante, mas há quem tenha mais. O António Costa, pelos vistos, tem mais do que eu, desse ponto de vista. Encara com mais desportivismo ainda. Agora, no normal das pessoas isto é insuportável. A política trouxe-lhe mais alegrias ou dissabores?

Como eu estive muitos anos na política, essa pergunta confunde-se um bocado com a nossa própria vida. Trouxe-me dissabores e trouxe-me alegrias. Agora, por exemplo, na Associação de Estudantes, eu acho que as alegrias foram maiores que os dissabores. Depois, na Câmara do Porto tive muitos dissabores, tive de andar com o guarda-costas, tive uma data de coisas. Li muita coisa injusta, mas fizemos coisas e ver essas coisas a acontecer é bom para quem está na vida pública. Na liderança do partido, eu diria que os dissabores foram talvez superiores às alegrias. Também há, mas tive a oportunidade de ver muitos comportamentos do ser humano que eu gostaria de não ter conhecido, de não ter visto. Se pudesse voltar atrás, haveria alguma coisa que faria de forma diferente?

Sabendo o que sei hoje e, se isso fosse possível, eu nunca teria ido para a política. Se isso fosse possível, eu teria feito a Associação de Estudantes, isso teria feito, acho que é até uma valorização profissional, foi-me útil. É para toda a gente, particularmente para quem anda num curso de economia ou de gestão porque tem de gerir também aquilo. Na altura, todo o material de estudo era gerido pela Associação. Se nós falhássemos, os alunos não tinham por onde estudar, até porque não havia dinheiro para livros e tal.

Eu tenho uma filha com 22 anos, ela mete-se pouco em política. Se ela me perguntar um conselho e quiser seguir o conselho, eu digo não. Claramente não. Mas digo mesmo. Eu não teria ido para a política porque acho que teria tido uma vida mais tranquila, teria ganho mais dinheiro. Teria sido diferente. Se tivesse sido uma carreira normal de economista, de gestor. Mais gestor do que economista, até. Considera que a vida política é solitária?

Depende dos cargos, há cargos onde é solitário. O primeiro-ministro é solitário algumas vezes, o Presidente da República é solitário muitas vezes. O presidente da Câmara é solitário algumas vezes, o líder da oposição é solitário. 

Por exemplo, isto agora tem piada, mas, na altura, não teve graça nenhuma. O Euro 2004 abriu no Porto, com um jogo entre a Grécia e Portugal. No dia anterior, houve um jantar na Alfândega, oferecido pelo presidente da Câmara às delegações e a muita gente, cerca de 800 pessoas. Vinha o primeiro-ministro, o ministro da Grécia, provavelmente o presidente da UEFA,... Por volta das três da tarde, eu recebo um telefonema do primeiro-ministro, que me diz: “Acabam de ser presos nove terroristas no Porto”. Na altura, foram uns serviços secretos ingleses que nos alertaram porque nem nós tínhamos capacidade para isso. Ou seja, iam fazer um atentado naquele jantar. Nós tivemos o 11 de Setembro, o 11 de Março em Espanha e aquele dia era o 11 de Junho. Batia certinho. Na chamada, ele disse-me: “Como o jantar é oferecido por si, decida como quiser, se quer anular o jantar ou se quer fazer o jantar. Nove estão presos, mas podem andar mais ou menos. Tenho aqui o Conselho a falar com o diretor nacional da PSP, que é quem está a coordenar a parte de segurança”. Eu desliguei o telefone, sentei-me num gabinete e pensava: “O que é que eu faço? Anulo o jantar ou mantenho o jantar? Anulo o jantar, matam-me. Mantenho o jantar, há um atentado e morrem 40 ou 50 pessoas, a começar por mim próprio, provavelmente”. Era algo secreto, eu não podia divulgar. A primeira decisão que eu tomei foi que a minha mulher não ia porque tinha uma filha pequenina. Depois falei com o diretor nacional, ele foi-me dando informações, alterámos aquilo tudo e, à última hora, as pessoas entraram por outra porta. Os telhados estavam cheios de snipers, de atiradores e eu mantive aquilo. Acabou por não acontecer nada. E o primeiro-ministro depois até acabou por dizer: “Eu, por acaso, não posso ir, surgiu aqui uma coisa”. Se teve imprevisto ou não, não sei [risos], mas aqui está uma situação que se passou comigo e que foi solitária.  Então que conselhos é que daria ao Rio de há 20 anos atrás? 

Eu acho que, perante as dificuldades e perante as múltiplas tarefas que há a fazer, é possível gerir, politicamente, com mais calma. Um bocadinho mais de prudência do que aquilo que são as minhas características, talvez. Ou eram. Diminuir um pouco a resistência à mudança. Houve circunstâncias na vida que eu podia, talvez, ter feito com a habilidade que a experiência traz. Agora, chegado à liderança do partido, eu já tinha essa experiência, já fiz um bocado mais assim. Aí era um bocado, porque não fazia mais, porque não barrava mais, porque não gritava mais, porque não sei o quê, porque não sei o que mais, porque não dizia muito mal deles, porque não sei o quê, porque eles fazem tudo mal, mas isto tem a ver com, hoje em dia, a sociedade está muito extremada e, por consequência, a política também, em que muitos olham para os grupos como tribos. Eu sou da tribo do partido A, eu sou da tribo do partido B, da tribo do partido C, logo, eu sou contra as outras tribos e ele não faz nada de jeito, está tudo mal. Isto é a melhor receita para o descalabro e para a estupidez, como é evidente. Mas é o que nós temos.

Apesar disso, eu acho que, olhando ao trajeto todo, onde eu me poderia aconselhar, em algumas circunstâncias, é “calma, ainda não, primeiro aquilo, depois aquilo”, e não tanto ao mesmo tempo. Apesar de, depois, chegar ao partido já com essa experiência [aconselhava-me] a ter praticado, com mais calma, devido à quantidade de vezes que me criticavam.

Ainda ontem passei pelo YouTube, numa entrevista minha à TVI, perguntaram-me porque é que ainda não tinha dito que votava contra o Orçamento do Estado do ano de 2020. E eu disse: “O Orçamento do Estado tem de ser estudado, e, apesar de ser normal que o Partido de Oposição vote contra, se assim for, eu quero dizer porque é que voto contra o Orçamento do Estado, tenho de estudar isto”, e a jornalista sempre a insistir. A experiência que me traz é para eu não ir a correr à televisão  dizer que sou contra como eles querem. Ou seja, ter calma, estudar e haver mais seriedade. Neste equilíbrio, era o que eu acho que me aconselhava a mim próprio a fazer.  Além do Dr. Francisco Sá Carneiro, que outras influências tem? 

Em Portugal, o Sá Carneiro. Um pouco o Doutor Balsemão, que estava com o Doutor Sá Carneiro na ala liberal da Assembleia Nacional. Depois, o Willy Brandt, na Alemanha. E o Helmut Schmidt, também. Eu também tenho uma admiração especial por Gandhi, mas esse morreu e eu ainda não era nascido. É uma figura histórica, é diferente. O Mandela, que eu tenho uma admiração muito grande. Eu acho que temos quase todos. 

Agora, mais diretamente a influenciar figuras da política, eu diria o Dr. Sá Carneiro e, por exemplo, o próprio Dr. Mário Soares, mas eu era mais o Dr. Sá-Carneiro. Apreciei, segui, li, ouvi. Tenho noção que há muita gente que me diz que eu tenho algumas parecenças na maneira de ser com ele, e terei. Só com uma diferença. Eu acho que, dentro das parecenças, eu sou mais moderado. Ele era muito radical e corajoso. É aquela frase que eu digo muitas vezes, e que me aplico a mim também: “Ainda que todos, eu não”.









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