Ana Gomes falou a’O Essencial sobre as eleições de 10 de março, a maioria absoluta do PS, a governação de António Costa e as maiores ameaças à democracia. Tem mais de 50 anos de carreira política, é militante do PS desde 2002, teve um papel importante no processo de independência de Timor-Leste quando integrava o Ministério dos Negócios Estrangeiros e foi deputada no Parlamento Europeu durante 15 anos. Assume-se como federalista europeia, concorreu às presidenciais de 2021 e foi a mulher mais votada de sempre em Portugal.
Que momentos da vida política é que a marcaram mais?
O 25 de abril foi absolutamente decisivo. Eu tinha 20 anos, estava suspensa da Faculdade de Direito, já por razões políticas. Nessa altura, vivíamos a ditadura em Portugal, a total falta de liberdades, o ambiente sinistro da Guerra Colonial, com os jovens da minha idade a irem para a guerra. E muitos a ter de fugir para o exílio. Isso marcou a minha juventude. O sentimento era de grande impotência e nós sabíamos que arriscávamos a vida.
A seguir, claro, houve aquele período conturbado quase inevitável de uma revolução naquelas circunstâncias. Em democracia tem de se ir aprendendo. A única maneira de ir praticando a democracia é ir andando, cometendo erros, melhorando.
Ainda hoje, no nosso país, eu vejo comportamentos que resultam de só termos 50 anos de aprendizagem de tolerância e nalguns momentos que penso que estamos a regredir. Foi-me plantada a ideia de ir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros e fiz a carreira diplomática, de que eu gostei a 200%. Tive o privilégio de poder ter um papel mais ativo quando se ofereceu a oportunidade de resolvermos o problema de Timor, com a mudança política na Indonésia. Porque é que entrei na política? Percebi que a exposição que o caso de Timor me tinha dado cá em Portugal tinha encorajado muitas jovens mulheres a interessarem-se pela diplomacia, que é política externa, não é partidária, mas é política. Quando recebi um convite para vir para a direcção do Partido Socialista, achei que não podia desperdiçar.
"Era preciso encorajar as mulheres jovens a entrarem na política e, por isso, fiz essa aterragem."
Acredita que o PS vai vencer as eleições de 10 de março?
O PS vai ganhar, acho que sim. Tudo farei para isso e estou muito ansiosa por ver o programa que o Pedro Nuno Santos nos vai apresentar. Eu gosto de Pedro Nuno Santos, sei que é um político com convicções socialistas, com espinha dorsal, com perfeita noção de que não há progresso económico que não seja também acompanhado por progresso social e que, portanto, não vale a pena ter contas certas se, ao mesmo tempo, não há serviços públicos de qualidade a funcionar na saúde, na educação, e se problemas essenciais de dimensão social, como é o caso da habitação, não forem devidamente trabalhados pelos governos. Foi a ideologia neoliberal nas últimas décadas que fez com que, por exemplo, se pensasse que a questão da habitação podia ser deixada ao mercado e é isso que explica que hoje Portugal tenha, por exemplo, um parque habitacional de rendas acessíveis muito reduzido em relação a outros países europeus. Isso são erros que nós fizemos porque mesmo o próprio Partido Socialista foi contaminado por todas as tretas neoliberais que são tretas que põem em causa, de facto, a vertente social do progresso. Eu acho que Pedro Santos tem bem noção disso e, por isso, eu confio nele, votarei nele e espero que ganhe.
Considera que o PS soube gerir a maioria absoluta?
Não, eu fui uma das pessoas que, de resto, foi contra a maioria absoluta. Isto é, para já, fui contra a precipitação de eleições em '21. Achei que não se justificava, não concordei que o Presidente da República tivesse dissolvido o Parlamento à conta disso. Eu sei que isso resultou de uma combinação entre ele e o primeiro-ministro. Acho que o facto de uma primeira versão do Orçamento não ter passado, não havia razão para que não se tentasse um outro Orçamento, ajustamentos. Achei que não havia razão para interromper a geringonça, que era necessário reforçar a geringonça e continuar a geringonça e temo, no fundo, o efeito de polarização que se veio a verificar, que explica a maioria absoluta para o PS. Muita gente que eu conheço foi votar no PS, com medo de de ver o Chega a fazer uma maioria de direita, a integrar uma maioria de direita e também eu tive medo pelo próprio PS.
Eu sei que, nos grandes partidos de poder, como o PS, o PSD, há uma grande tendência para alguns pensarem que, pelo voto, tudo é possível e que, de facto, o poder é absoluto e não é. Portanto, achei que isso seria mau para a democracia e seria mau para o PS. E foi.
A experiência da geringonça mostrou que o consensualizar com outras formações políticas era realmente positivo para a democracia.
Não quero dizer que a concertação tivesse que ser sempre só com os parceiros da esquerda, podia haver casos, e havia, onde era preciso uma concertação também à direita. Por exemplo, um dos setores que mais precisava dessa concertação à direita era a reforma da justiça e, aqui, estamos numa situação em que o governo de António Costa morre às mãos da justiça e da justiça que não reformou de uma procuradora. O líder da oposição, nessa altura, no PSD, estava disponível para falar de reformas na justiça. Não estou a dizer que as propostas de Rui Rio fossem aceitáveis, mas havia disponibilidade para falar, para consertar uma solução, porque a justiça é realmente essencial, para a democracia funcionar, e ela tem que inspirar confiança aos cidadãos. Hoje, a justiça portuguesa não é credível e não foi preciso chegarmos até à Operação Influencer para ela se desacreditar. Uma justiça que é forte com os fracos, mas que é fraca com os fortes é uma justiça que, obviamente, não serve o país e a democracia. Eu espero que o PS se redima por esses graves erros que cometeu.
Como avalia a liderança de António Costa nos últimos oito anos?
O António Costa é, sem dúvida, dos mais talentosos políticos que eu vi cá em Portugal, depois do Dr. Mário Soares, Jorge Sampaio, Sá Carneiro, sem dúvida.
Mas o talento e as capacidades negociais exímias não chegam e eu acho que é preciso ter a ambição de fazer reformas para o país e o PS, nesta última vez, teve tempo para fazer reformas e não quis fazê-las e isso é por responsabilidade de António Costa.
Não quis fazê-las na geringonça com o argumento de que os parceiros não deixavam. Seria difícil, mas não era verdade. Depois de ter passado os quatro anos com o reforço do PS, naquele período seguinte era mais que necessário e havia condições para se fazerem reformas. Acho que, a partir de certa altura, António Costa começou a governar para Bruxelas. Eu percebo porque, obviamente, o país tinha estado na situação terrível da troika, tinha que fazer um percurso de equilíbrio das condições públicas e eu acho que, nesse aspeto, foi extraordinariamente positivo o trabalho de António Costa e dos seus governos, no sentido de demonstrar que qualquer governo socialista tem o dever de garantir o equilíbrio nas contas públicas e que o país não se endivida excessivamente. Isto, para não se voltar a estar numa situação de perda de soberania como foi a que teve durante a troika, mas isso tem que ser combinado, doseado. Não faz sentido nenhum chegarmos a uma situação como a atual, em que o ministro das finanças diz que tem uma almofada com excedentes de 2 mil milhões. Depois, temos os serviços públicos essenciais como o Serviço Nacional de Saúde, a educação ou outras áreas com graves problemas.
É possível ter contas equilibradas, não ter défice e ir diminuindo a dívida pública, claro, mas, ao mesmo tempo, pôr dinheiro nos orçamentos que efetivamente sejam executados para pagarem os serviços públicos essenciais. Por exemplo, no setor da educação, como é que nós vamos ter escolas a funcionar como deve ser, se estamos em guerra e essa guerra foi comprada e alimentada por António Costa, estupidamente, com os professores. Ao mesmo tempo, também não se fez o investimento que era necessário. Claro que há algum investimento graças aos fundos europeus, mas os fundos europeus não duram sempre e nós devíamos usar os fundos europeus para dar um saldo qualitativo em termos de crescimento económico sustentado.
A pandemia foi uma área onde eu acho que a governação de Costa foi particularmente boa a gerir as condições extremamente duras que o país enfrentou, mas, depois, a pandemia levou a que, a nível europeu, se suspendessem regras como, por exemplo, relacionadas com os dados macroeconómicos das finanças do país e de todos os países membros da União Europeia. Em Portugal, não quisemos ser mais papistas que o Papa. Não havia necessidade, pelo contrário, as necessidades estamos hoje a vê-las, a pagá-las e o próprio PS as paga com a falta de confiança de muitos cidadãos, quando veem o estado em que está o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública ou não se terem resolvido mais cedo problemas como o da habitação. Sobretudo, um que me parece absolutamente estruturante é o facto de nos conformarmos com a ideia de exportarmos jovens qualificados. Nós temos, absolutamente, que aproveitar os nossos jovens, necessitamos deles para darmos o salto qualitativo no crescimento económico e social de que precisamos.
Continuamos a desperdiçar o interior do nosso país, onde, hoje, há pouca gente, gente de idade, incapaz de tomar conta e de explorar os recursos. Hoje, com as novas tecnologias, obviamente, tem-se qualidade de vida em qualquer lado, até se tem mais qualidade de vida se calhar numa aldeia no recôndito da Beira Alta do que num bairro periférico de Lisboa.
Tendo em conta os últimos anos de governação, o PS continua a ser uma boa solução para Portugal?
Considero, apesar de tudo. Primeiro, o programa do partido e eu acredito em ideologia. Passam a vir aí uns tipos que se dizem tecnocratas, neoliberais e dizem que é muito ideológico. Tem que ser ideológico, isto é, a ideologia é o que faz mover o mundo, se não tivéssemos ideias, sistemas de ideias, isto era tudo completamente desconchavado. O grande problema do PS é que, muitas vezes, não aplica a sua ideologia e deixou-se contaminar por ideologias perversas, designadamente as neoliberais, essas que acham que o mercado regula tudo ou que, por exemplo, haver inação durante anos e anos em relação às questões da habitação. À conta dessa crença neoliberal, o mercado que tudo regulava na habitação não regulou. O PS foi tão responsável e, até mais, eu sou mais exigente com o meu partido. Como é óbvio, custa que o meu partido, que tem uma ideologia, a meta na gaveta e vá aplicar a ideologia neoliberal.
Eu acredito que o programa do PS é o melhor e acredito que o Pedro Nuno Santos tem muito mais condições do que o António Costa tinha para aplicar a ideologia do Partido Socialista, que é moderada, social-democrata. O PS é que é genuinamente social-democrata. O PSD chama-se social-democrata, é uma coisa histórica, mas é de centro-direita e tem lá correntes super neoliberais. O PS é que é realmente moderado, social-democrata. Quer crescimento económico, mas com progresso social e com justiça social, e eu acredito que o Pedro Nuno Santos tem as convicções para realmente não perder de vista esses valores e esses princípios que devem nortear a atuação de um governo socialista.
Neste momento, qual é a maior ameaça à democracia no Parlamento Português?
A maior ameaça à democracia, no Parlamento, e não só, é são estas teses neoliberais que esquecem os valores, os princípios e a ideologia, pregando o individualismo desbragado, o desinteresse do Estado por tudo. O Estado mínimo desregulador, no fundo. O grande problema é que nós temos várias décadas dessa ideologia dita tecnocrática desreguladora e isso contaminou muita gente, incluindo a família socialista, não só portuguesa, mas europeia e levou a praticar estas políticas. As consequências estão aí a ver-se e isto também tem repercussões na ética política e pessoal de cada um dos agentes políticos. As pessoas pensam que o objetivo é enriquecer, que é a lógica neoliberal. Elas entorpecem os princípios e valores do interesse coletivo e eu acho que essa corrupção, não só em termos económicos, mas em termos políticos é a principal ameaça ao trabalho político seja no Parlamento Nacional, no Parlamento Europeu ou em qualquer estrutura partidária, incluindo na governação.
Candidatou-se às presidenciais de 2021 e foi a mulher mais votada de sempre. Considera uma candidatura à Presidência da República nas próximas eleições?
Eu, com a minha idade, aprendi que nunca se diz nunca, mas também não tenho planos absolutamente nenhuns de me candidatar. Naquelas circunstâncias, por razões muito concretas, sabia que tinha pouquíssimas hipóteses, até porque o meu próprio partido não me apoiava, mas eu não podia deixar o representante da extrema direita anti-democrática vir a ser o número dois por falta de comparência da esquerda democrática.
Hoje, as condições são diferentes. Na altura, também eu chamei muito a atenção para o precedente gravíssimo que o Presidente tinha orquestrado no governo dos Açores, deixando o Chega participar no governo dos Açores e eu disse que a responsabilidade era do Presidente.
Eu decidi candidatar-me e fi-lo também para denunciar esse precedente extremamente grave para a nossa democracia, que é o do entendimento com o Chega, que, infelizmente, nos arriscamos, hoje, a ver também replicado ao nível nacional.
Commentaires