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  • Foto do escritorBeatriz Tavares

Porto de Encontro: Pilar del Río apresentou o livro “A Intuição da Ilha”

Atualizado: 18 de jan.

Pilar del Río foi a protagonista da 101.ª sessão do ciclo literário Porto de Encontro, realizada na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, a 25 de novembro de 2023. Na sessão dinamizada pela Porto Editora, a presidente da Fundação José Saramago apresentou o livro “A Intuição da Ilha”.


Intervenientes da 101ª edição do Porto de Encontro | Imagem: Beatriz Tavares/O Essencial

A Intuição da Ilha, prefaciado por Fernando Gómez Aguilera, narra o quotidiano de José Saramago na casa situada na ilha espanhola de Lanzarote, para a qual se mudou em 1992 e onde viveu durante dezoito anos. Entre os vários capítulos do livro, Pilar del Río revela “a cultura de hospitalidade praticada” no espaço conhecido como A Casa e detalhes da origem e do desenvolvimento dos livros que Saramago escreveu nos últimos 17 anos da sua vida literária.

Na sessão, Sérgio Almeida, jornalista, começou por frisar que esta foi construída em torno de José Saramago e recordou que “foi há precisamente 25 anos que aquele que é, foi e será sempre o autor de alguns dos mais essenciais romances do nosso tempo, foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura”. Acrescentou ainda que “é a terceira vez que o José Saramago participa, entre aspas, no ciclo literário”. Desta vez, através da presença de Pilar del Río, a sua companheira durante mais de vinte anos e autora do livro que recorda os dias de José Saramago em Lanzarote.

A presidente da Fundação José Saramago explicou que o livro foi escrito “sob ameaça de morte”, após uma das guias que faz visitas à A Casa ter montado uma editora e ter pedido a Pilar para escrever sobre as memórias e histórias que tantas vezes partilhava. O episódio aconteceu no período pandémico e a guia, inclusivamente, utilizou o argumento de que, “por ser mais velha”, Pilar poderia “morrer em qualquer momento”. “Ela ameaçava-me: estás bem? Escreveste muito? Ela o que queria era que acabasse, não que estivesse bem.”, contou a autora entre risos.

Pilar justificou o título atribuído ao livro, referindo que “um dia pensei que era normal que Saramago acabasse a viver numa ilha. Ele tinha escrito A Jangada de Pedra. O ser humano que coloca dois países a navegar para outros continentes, acho que está fadado para viver numa ilha. E depois encontro-me com alguns poemas e começo a dar-me conta de que, na obra de Saramago, isso está expressado de diversas formas. Por isso eu nomeei-o A Intuição da Ilha”. A autora refletiu sobre o facto do casal nunca ter pensado ou relacionado isso: “não pensávamos que era óbvio que ele acabasse numa jangada de pedra. Nunca verbalizávamos isso.”

Sobre o processo de escrita, contou que lembrou momentos e que “uns levavam-na a outros”. Pilar explicou que Saramago disse que, até ao Evangelho Segundo Jesus Cristo, tinha descrito uma estátua, mas, a partir desse livro e “talvez pelo que de tão terrível provocou no seu interior (...) ele diz que ele não queria descrever uma estátua, que lhe interessava mais descrever a pedra da qual está a estátua feita. (...) para descrever a pedra, chegar a uma ilha onde qualquer verde é um milagre. Não há, é pedra vulcânica. Então era muito interessante como se junta o desejo, a paisagem, a situação. Porque, depois de escrever o Evangelho Segundo Jesus Cristo, o único livro que podia escrever era o Ensaio Sobre a Cegueira. Não havia hipótese de outro.”

É de notar que o capítulo de A Intuição da Ilha intitulado “Escrever em Lanzarote”, a autora escreveu «Ensaio Sobre a Cegueira era o livro que trazia na bagagem, talvez a obra que mais tempo o ocupou (...) desde que a ideia lhe apareceu enquanto almoçava num restaurante na Madragoa, em Lisboa. “E se todos ficássemos cegos?”, foi a pergunta que se fez. Precisou de chegar a Lanzarote para lhe dar resposta.»

Questionada pelo jornalista Sérgio Almeida sobre se os “últimos dezoito anos marcados por uma imensa felicidade” passados em Lanzarote foram quase uma segunda vida para Saramago, Pilar esclareceu que este “não gostava muito da palavra felicidade. Ele dizia que tentávamos viver em harmonia. Era um conceito demasiado grande para a situação que vivíamos. A Lanzarote não chegavam os ecos sociais. Não havia receções, não havia saídas. Era uma vida mais de trabalho e muito doméstica, mas chegavam todas as vozes e nós víamos que, por vezes, aproximava-se uma embarcação pequena com emigrantes, cem quilómetros de África. E ouvíamos os fragores de combate.”

Perante este cenário, “José Saramago, moribundo, sabendo que não tinha muito tempo de vida, pôs-se a escrever Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, porque ele dizia que se há uma fábrica de armas inexoravelmente tem que haver fábrica de conflitos. (...) Porque não se fabrica para não usar.(...) Então, vida de felicidade, muito pouco. Porque ele era um, num universo de muitos milhares.”, continuou a companheira do escritor.

"Pensando bem, a terra, o planeta, é um arquipélago. E todos somos ilhas. Só que uma é a América, maior, África, outras são mais pequenas, mas somos todos ilhas. E vivemos num arquipélago, que é o mesmo para todo o mundo. Só que não nos damos conta, colocamos bandeiras e fazemos guerras."

- Pilar del Río


Excerto da leitura do capítulo "O Anúncio do Nobel", feita por Minês Castanheira | Vídeo: Beatriz Tavares/O Essencial


Uma vez que "A Intuição da Ilha mantém a memória de Saramago viva", o moderador da conversa perguntou à autora se tem a sensação de que o companheiro faleceu há treze anos. Pilar afirmou que “os escritores nunca morrem. Morrem os seres humanos. Mas com os escritores abrimos o seu livro, abrimos o Ensaio Sobre a Cegueira e dizemos ‘Está a narrar hoje’. Abrimos o Ensaio Sobre a Lucidez… Eu acho que vamos poder ler o Evangelho Segundo Jesus Cristo o tempo que temos de vida, o Memorial do Convento também e Levantado do Chão. Acha que já não há pessoas que se levantam do chão e que ao chão não querem voltar?”.

Sérgio Almeida continuou a conversa passando o foco para o panorama mundial e questionou Pilar del Río sobre a necessidade de “vozes lúcidas, com o poder de chegar a vários públicos”, como a de Saramago. A companheira do escritor crê que “estamos necessitados de nós mesmos, de sermos valentes, de reivindicarmos nós mesmos e de propormos e de atuarmos. Porque cada um de nós é o centro do mundo, somos importantíssimos, somos únicos e, às vezes, deixamo-nos levar, como se fôssemos mais um e não somos mais um. No dia em que morremos, morre uma parte do mundo. Enfim, (...) a cultura deveria estar mais presente nos planos de formação básica, média, nas universidades, que não basta que saia um técnico muito bom em sua matéria, devia ter também mais enraizado o conceito de humanismo, que não basta fazer um aparelho, se não perceber os símbolos.”

Em seguida, foi destacado o trabalho feito pela Fundação José Saramago (cujo nome dá título a um dos capítulos do livro), sediada na Casa dos Bicos, em Lisboa. A presidente explicou que a declaração de princípio, feita pelo próprio autor, refere que a fundação não foi criada para “contemplar o umbigo do autor”. Os três propósitos que pretendem cumprir são as culturas, os diálogos e encontros culturais, a defesa do meio ambiente e a declaração dos direitos humanos. Estes são os motivos para que a Carta Universal de Deveres e Obrigações dos Seres Humanos seja o capítulo final de A Intuição da Ilha.

“Saramago dizia que era o documento mais importante do século XX (...), que, talvez, nós, cidadãos comuns, teríamos que tomar também a iniciativa e a palavra”, porque “todos nós temos direitos e, além disso, temos deveres. O primeiro dever é que todos os direitos se cumpram, mas temos o dever de nos formarmos, de estudar, de ler, de participar, de respeitar o meio ambiente, as diferentes opções das pessoas, formas de família. Tudo isso está nos deveres humanos e é o que defendemos dentro da Fundação.”, justificou Pilar.

Ainda sobre a Fundação José Saramago, Sérgio Almeida perguntou a Pilar se tem sido uma jornada muito cansativa, ao que a companheira do escritor respondeu “O próprio José Saramago, que tonto não era, já o sabemos, dizia ‘não queiras estar na pele de Pilar quando estiver morto. (...) Cansativo? Muito. Mas, no outro dia, eu estava em Lisboa, vou a correr, porque tinha que entrar num programa de rádio em direto. E então vi toda essa rua imensa, Almirante Reis, como as pessoas estavam a preparar as camas. Era perto das dez da noite e não eram pessoas que viviam nas ruas. O aspeto era de pessoas que vinham de trabalhar, de fazer suas jornadas e não tinham casa. (...) Ou seja, vida difícil é essa.”

Pilar acrescentou que o trabalho desenvolvido pela Fundação para manter a obra de Saramago viva é responsabilidade dos leitores, “que mantêm a obra ou não. Também um pouco as editoras.” A atualidade e a intemporalidade dos livros do Nobel da Literatura foi outro fator apontado: “O que é curioso é que agora, por exemplo, nas eleições da Argentina, a quantidade de artigos que saíram com referências à obra de Saramago - Ensaio Sobre a Cegueira ou a Lucidez, por exemplo. Foi enorme. Ou com a situação da Palestina. A obra de Saramago está viva. Está.”


Excerto da leitura do capítulo "A Casa", feita por Minês Castanheira | Vídeo: Beatriz Tavares/O Essencial


Entretanto, Júlio Machado Vaz foi chamado ao palco, para se juntar à conversa. O psiquiatra começou por destacar que a presença da declaração dos deveres humanos no livro e o facto da declaração dos direitos humanos também ter sido mencionada “é uma pungente e infeliz coincidência, neste momento. Nós vivemos uma situação catastrófica.”

Depois desta introdução, Júlio Machado Vaz utilizou a sua experiência como professor de antropologia médica e da sexualidade e explicou que, em associação livre, o livro apresentado trouxe-lhe o amor cortês ao pensamento: “Porque duas das facetas mais importantes do amor cortês eram a joia, la joie, a alegria, digamos assim, e eu vou arriscar o meu francês e o garde à mesure, ser capaz, como os trovadores, em teoria, faziam, de manter uma distância para a sua amada.”, justifica. Sobre a leitura de A Intuição da Ilha afirmou que, quando acabou de ler o livro, parece-lhe “haver quase a nostalgia de, pese embora a elegância, a técnica e a magnífica escrita do livro, escrever uma crónica de alguém, dos anos de alguém, etc.”

O convidado especial continuou a apresentação do raciocínio com a explicação do uso da palavra “intuição”, que, em psiquiatria, “não tem a conotação quase de epifania que, às vezes, damos. Na minha profissão, grande parte das vezes, a intuição é um encontro com memórias profundas que fazem com que, de repente, qualquer coisa ou alguém faça sentido, naquele momento. E, por isso, eu acho que Lanzarote e Azinhaga fazem todo o sentido.”

Enquanto Júlio Machado Vaz procura uma página do prefácio do livro para iniciar a leitura de alguns excertos, Sérgio Almeida intervém, em tom de brincadeira, e afirma que Pilar não estava preparada para sentar-se no divã do psiquiatra. Seguiram-se risos e aplausos generalizados.


Imagem: Inês Silva/O Essencial

Ânimos acalmados, o professor começa a ler dedicatórias feitas por Saramago, para a sua companheira, nalguns dos seus livros, para sustentar uma tese: “(...) A Pilar, como se dissesse água (Caim, 2009) Peguemos nesta última. A maneira mais simples é dizer, quem tem sede, anseia por água. Não se pode ter uma frase mais bela do que dizer isto a alguém.” Prosseguiu o raciocínio e referiu que vivemos tempos em que estamos sempre à espera de uma validação científica, «eu já fui médico, e veio um número, que aliás confirmei com o professor Manuel Sobrinho Simões, que me disse, “tens razão, é que nós somos compostos 70% por água”. Ou seja, 70% de José era Pilar. E, por isso, e assim termino, permita-me que lhe diga que a mim não me enganou. Afetivamente, este livro foi escrito a quatro mãos.»

“Saramago é o protagonista, é o centro, é o que importa”, responde-lhe a autora do livro. Acrescentou que é jornalista, não escritora. “Os jornalistas não estão nas crónicas. Ou não deveríamos estar. Às vezes, entramos mais. Gostava tanto do que ia contar que, em nenhum momento, poderia colocar um eu. (...) o livro está cheio de Saramago porque é o personagem central (...) Não é um livro de crónicas sobre outras coisas”.

Pilar assegura que escrever o livro A Intuição da Ilha foi ,“seguramente”, um ato isolado, “simplesmente porque não teria nada que dizer” num novo livro, justifica.

Antes da pergunta final, Júlio Machado Vaz deixou uma nota sobre a necessidade de uma voz lúcida, como a de Saramago, na atualidade mundial: “a palavra atualidade é um otimismo, porque, quando nós a dizemos, há um pressuposto de que é hoje, aqui e agora e depois vem outra coisa, mas esta atualidade dura, vem de trás”.

Para encerrar a sessão, Sérgio Almeida perguntou aos convidados se a cultura, os livros devem adaptar-se aos desafios atuais ou se devem fazer frente e ser como um porto de abrigo. Pilar afirmou «qualquer coisa, menos adaptar-se. Adaptar-se nunca. Há que pensar, escrever, trabalhar, criar. Há que vencer as forças do mal. O sistema está organizado de tal maneira que nos quer, vou citar Saramago, que dizia “querem-nos resignados, submissos ou amedrontados. Querem-nos silenciosos, confortavelmente consumidores.” Se não somos consumidores, já temos um problema». A autora de A Intuição da Ilha defende que é necessário romper essa dinâmica.

Júlio Machado Vaz confessa que há momentos em que também lhe apetece ficar entre aqueles que ama, a sua “tribo”, mas que, até agora, algo que sempre ensinou aos seus alunos é que “todos temos direito a dez minutos por dia de autopiedade, em que achamos que o mundo é horrível, que não nos merece, que nos tratou mal, etc. Ao fim de 10 minutos, temos que nos levantar e seguir adiante ou, como alguém escreveu e cantou, enquanto houver caminho para andar, tem que ser assim.”


A sessão de autógrafos é um momento obrigatório no final das sessões do Porto de Encontro | Imagem: Beatriz Tavares/O Essencial

Após a conversa, as mais de duzentas pessoas que encheram o auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett tiveram oportunidade de participar numa sessão de autógrafos. Terminado esse momento, O Essencial conversou com a autora de A Intuição da Ilha. Questionada sobre a possibilidade de separar Pilar del Río de José Saramago, do homem e da obra, a companheira do escritor respondeu que “É sempre possível separar, mas é verdade que construímos juntos um período de tempo muito grande. Não éramos marido e mulher, quer dizer, éramos marido e mulher, mas, sobretudo, éramos companheiros, éramos colegas e trabalhávamos juntos. Então isso fez-nos participar nos mesmos projetos. Não precisava de ser assim. Não temos de compartilhar projetos, por sermos seres humanos. No meu caso e no de José Saramago, projeto político, projetos sociais, projeto literário, projeto cultural. Então, pode-se separar? Sim, mas a verdade é que estávamos a trabalhar juntos e, por isso, continuámos juntos.”

Por fim, Pilar del Río falou sobre a sua vida antes de conhecer e viver com José Saramago: “Era uma jornalista que começou a trabalhar muito cedo em jornais e que rapidamente passou para a rádio, que adora a rádio mais do que a outros meios e que logo, por razões profissionais, passou para a televisão. Escrevi em revistas, assisti à fundação de alguns jornais tão estupendos como, por exemplo, o El País. Trabalhei na televisão espanhola e apresentei programas numa época em que tínhamos de segurar no cenário por um dos lados porque ele caía. Claro, não havia guionista, nós mesmos fazíamos as entrevistas, as perguntas e quase a realização. Foi uma época muito rica. Eu era uma jornalista que trabalhava muito, era também uma ativista e uma pessoa aberta e disposta.”

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